Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Eleições no Irã reforçam legitimidade do regime

O resultado das eleições para o Parlamento e a Assembleia dos Especialistas é uma ótima notícia para dezenas de milhões de iranianos que anseiam por mudanças econômicas e sociais.

A composição final do Legislativo ainda depende do placar definitivo e das futuras alianças, mas o pleito mostrou que moderados e reformistas conseguiram consolidar o protagonismo adquirido com a ascensão do presidente Hasan Rowhani, em 2013, e hoje são a força dominante no xadrez político de Teerã.

Mas esta narrativa, tão festejada no Ocidente, não deveria ocultar uma realidade igualmente importante: estas eleições, como todas as demais no Irã, serviram principalmente para perpetuar o modelo de regime em vigor desde a revolução de 1979.

Batizado de "velayat e-faghi" (governo dos juristas islâmicos), o peculiar sistema iraniano que mescla teocracia e instituições republicanas tem na participação popular sua principal fonte de legitimidade.

Na narrativa do regime, cada boletim introduzido nas urnas, independentemente da escolha do eleitor, é um voto de confiança no sistema.

Não por acaso, o homem mais poderoso do Irã, o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, usou sua primeira fala pública após o pleito para agradecer aos iranianos pela alta participação (mais de 60%), que ele qualificou de "vitória da democracia religiosa."

Antes das eleições, Khamenei havia pedido um voto em massa como sinal de rechaço aos "inimigos da nação."

Um dos maiores trunfos do regime nestas eleições foi o fato de que dois líderes reformistas teoricamente banidos do sistema foram votar em meio a grande cobertura midiática: o ex-presidente Mohammad Khatami, proibido de deixar o Irã, e o ex-candidato à Presidência Mir Hossein Mousavi, em prisão domiciliar desde 2011 por instigar protestos em massa.

O resultado das urnas em si não deve ser superestimado, já que candidatos a qualquer cargo eletivo no Irã precisam passar pelo crivo do Conselho de Guardiães da Revolução, órgão de 12 juristas e clérigos não eleitos.

O conselho barra todos aqueles que julgar insuficientemente leais ao sistema.

Mais de 60% das 12 mil candidaturas ao Parlamento unicameral foram vetadas. Ou seja, todos os eleitos são vistos como alinhados ao regime.

Além disso, o poder dos deputados eleitos é limitado.

O Parlamento iraniano tem discussões acaloradas, votações abertas e comissões semelhantes ao que ocorre no Ocidente, mas suas leis valem menos do que qualquer declaração do aiatolá Khamenei.

Já a Assembleia de Especialistas, que passa a ser controlada por aliados de Rowhani, só terá relevância quando for incumbida de apontar o substituto o novo líder supremo, cargo vitalício. Khamenei tem 76 anos.

Rowhani e seus simpatizantes saem fortalecidos com mais um claro sinal de apoio interno, mas sua agenda continuará esbarrando nas instituições ultraconservadoras sobre as quais não têm nenhum controle, como o Judiciário e a Guarda Revolucionária, a temida elite militar.

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No fundo, Khamenei sempre terá suas preferências entre candidatos, mas ele costuma permitir o desenrolar das lutas fratricidas que estão no DNA do bizantino sistema "velayat e-faghi".

Esses movimentos de pêndulo no equilíbrio de forças internas foram muito marcados no fim dos anos 1990, quando Khatami conduziu uma histórica abertura política e cultural que foi confrontada com número recorde de ataques contra reformistas e jornalistas.

Khatami foi substituído em 2005 por Mahmoud Ahmadinejad, um líder populista que começou com agenda extremista, mas terminou o mandato defendendo maiores liberdades individuais, inclusive para mulheres.

Rowhani, ele mesmo clérigo, manobra com cautela máxima. "A matriz da Presidência Rowhani é seu constante esforço para alcançar consenso dentro do fragmentado sistema político iraniano", diz Reza Marashi, analista iraniano.

Em suma, pragmáticos poderão imprimir sua marca na gestão do país, mas engana-se quem aposta nisso como premissa para o fim da república islâmica.

O jornalista SAMY ADGHIRNI foi correspondente no Irã de 2011 a 2014


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