Folha de S. Paulo


Raúl Castro sairá do cargo, mas não deixará o poder, diz historiador

A recente declaração do ex-presidente uruguaio José Mujica confirmando que Raúl Castro está mesmo decidido a deixar o poder em 2018 foi recebida com alívio por opositores do regime, entre eles o historiador Manuel Cuesta Morúa, 53.

"Mostra que Raúl reconheceu que não está à altura, seja por razões ideológicas ou físicas, de encabeçar as reformas que o país precisa", disse Morúa à Folha.

Marcus Leoni/Folhapress
O historiador e dissidente cubano Manuel Cuesta Morúa, em entrevista no Instituto FHC
O historiador e dissidente cubano Manuel Cuesta Morúa, em entrevista no Instituto FHC

O cubano, que é porta-voz do Arco Progressista, partido social-democrata que busca reconhecimento oficial, contudo, reconhece que o mais realista é haver em 2018 "uma sucessão de poder dentro do poder".

Mesmo tendo sido detido 12 vezes pelo governo cubano, Morúa diz que os EUA não devem condicionar o fim do embargo a que Cuba assuma o compromisso de liberar mais presos políticos.

"Não deve haver moeda de troca", disse, em São Paulo, onde palestrou no Instituto FHC. "O embargo deve ser eliminado. (...) Seu levantamento traria mais dificuldades para a continuidade do regime do que um fortalecimento."

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

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Folha - Obama irá a Cuba em março, na primeira visita de um presidente dos EUA à ilha desde 1928. Qual sua expectativa para a viagem?
Manuel Cuesta Morúa - Essa visita envia um sinal de que os EUA querem apoiar o povo cubano em suas transformações e na sua reinserção global, respeitando a soberania cubana. Também é uma oportunidade para que se desfaça qualquer ideia de que os EUA querem se apropriar de Cuba -uma narrativa sob a qual a maioria dos cubanos cresceu.
Hoje, em Cuba, Obama é o político mais popular -muito mais que Raúl Castro. Há amigos que querem viajar do leste do país até a capital só para a visita.

Na sua opinião, por que Cuba aceitou se reaproximar dos EUA neste momento?
Definitivamente é um sinal do esgotamento do modelo de Cuba. Raúl e toda a cúpula política reconheceram que era preciso buscar uma reacomodação se quisessem ao menos dar continuidade a parte do processo político construído depois de 1959. Acho que Raúl se deu conta de que era melhor começar agora a reconstruir a relação com os EUA do que deixar os grandes problemas estruturais se acumularem -o que poderia ser pior para quem vai lhe suceder.

O ex-presidente uruguaio José Mujica confirmou que Raúl está decidido a sair em 2018. O sr. acredita que ele deixará mesmo o poder?
Antes de Mujica confirmar, muitos -inclusive eu- tinham dúvidas de que Raúl sairia, porque o país está numa situação muito complexa. A confirmação mostra que Raúl reconheceu que não está à altura, seja por razões ideológicas ou físicas, de encabeçar as reformas que o país precisa. E eu não acredito que, a essa altura da sua vida, Raúl mudará sua mentalidade o suficiente para entender que a liderança para fazer reformas é diferente da que ele exerce.

Como o sr. acha que será realizado o processo de sucessão em 2018?
Nossa pretensão é que haja eleições livres, plurais, democráticas e com observação internacional, em que possam competir pelo poder as diferentes alternativas políticas, porque a Constituição cubana não proíbe a existência de outros partidos. Muitas associações da sociedade civil estão trabalhando em uma plataforma chamada Otro18, que busca reforma no sistema eleitoral e na lei de associações.

Mas é realista pensar em eleições com essas características?
Sendo realista, se não houver pressão suficiente haverá obviamente uma sucessão de poder dentro do poder. Mas os sucessores vão se ver obrigados a fazer muito mais reformas se quiserem ter maior apoio da sociedade. Os cubanos também passaram por uma mudança de mentalidade, e, ao contrário do que se pensa, muitos já querem eleições livres, outra realidade e outros atores. A Cuba oficial hoje não reflete a Cuba real.

A sucessão 'dentro do poder' seria com Miguel Díaz-Canel, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado?
Se quiserem respeitar sua própria decisão institucional, Díaz-Canel é o seguinte na linha de sucessão. Em abril, haverá um congresso do Partido Comunista em que se deve definir melhor o que será feito em termos de sucessão política.

Se assumir, quanto Díaz-Canel estará sob a influência dos irmãos Castro?
Raúl se retirar nominalmente da vida política não supõe que ele vai se retirar realmente do gerenciamento do poder em Cuba. Díaz-Canel seria o rosto do poder, não acho que teria muita autonomia. Raúl ocuparia o papel que Fidel ocupou quando se retirou, que é o de tentar marcar os limites do dirigente.

Que influência tem Fidel hoje?
As mudanças feitas por Raúl mostram que Fidel já não tem controle sobre as tendências do país. Na filosofia política de Fidel, não seria concebível que um presidente americano em exercício visitasse o país. Fidel tinha a lucidez de saber que a continuidade do chamado processo revolucionário dependia de manter viva a tensão e o conflito com os EUA.

Os EUA deveriam usar o pleito pelo fim do embargo para exigir mais concessões de Cuba, como a libertação de mais prisioneiros políticos?
Na minha visão, não deve haver uma moeda de troca. O embargo deve ser eliminado. É preciso pressionar o governo cubano para que respeite as liberdades fundamentais, mas a pressão do embargo não funciona mais e não deve ser um 'quid pro quo'.
O melhor que poderiam fazer os EUA é levantar o embargo, porque o governo cubano teria tanta dificuldade para gerenciar esse novo cenário que, definitivamente, a democracia viria por si só.

A pressão seria maior após a queda do embargo?
A pressão poderia ser maior e mais legítima. O levantamento do embargo traria mais dificuldades para a continuidade do regime do que um fortalecimento. Numa relação econômica sem pressão com o mundo, o governo estaria obrigado a reformular seu modelo econômico mais do que está fazendo agora.

Obama apresentou um plano ao Congresso para fechar Guantánamo. Acabar com a prisão é fundamental para a reaproximação?
Obama prometeu fechar a prisão. Do lado cubano, o que se quer é a devolução do território da baía. Mas, curiosamente, o governo cubano começou a pleitear isso para dificultar a normalização das relações diplomáticas. O território de Guantánamo nunca esteve dentro das demandas de Havana aos EUA. O governo cubano tem interesse que a normalização seja um processo mais lento.

Como o sr. vê a posição do Brasil sobre o regime e o que espera do país neste momento?
Infelizmente, em relação à Cuba, a visão política do governo brasileiro nos últimos anos não foi de Estado, mas ideológica. Uma visão de Estado suporia cobrar compromissos sobre direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente das relações próximas. E justamente por serem amigos, o Brasil estaria em melhores condições de pedir que os direitos humanos sejam respeitados em Cuba. A prosperidade da nossa região não pode ser divorciada dos direitos humanos.

Quais são os principais desafios para a abertura do país a investimentos estrangeiros?
A lei de investimentos estrangeiros não oferece todas as garantias das que os grandes investidores precisam: não deixa claro como se estabelecem os litígios, nem a questão da segurança jurídica, de reconhecimento de propriedade, de regulação do mercado de trabalho. Os primeiros que visitaram Cuba depois do restabelecimento das relações diplomáticas foram investidores norte-americanos, e a maioria voltou dizendo que não há condições. Ainda há uma resistência do governo cubano em criar um mercado interno, e muitos investidores sérios querem ir a Cuba para vender seus produtos lá.

O que mudou na sua vida, como opositor, após a reaproximação com os EUA?
Há uma maior visibilidade das propostas políticas que vínhamos fazendo há muitos anos, porque o conflito entre Cuba e EUA antes se sobrepunha ao conflito entre o Estado cubano e a sociedade. O governo ainda reprime muita gente e ainda há cerca de 60 opositores presos, mas o pretexto para atacar sistematicamente as alternativas que representamos já está debilitado. A sociedade também está mais aberta a escutar sobre propostas de mudança.
No plano pessoal, estão nos permitindo trabalhar melhor com a comunidade internacional, e a censura está menor. Ainda não temos acesso aos meios oficiais de comunicação, mas podemos publicar em meios digitais.

Qual o impacto da abertura para a população cubana negra?
A comunidade afrodescendente é a grande perdedora de um feito positivo que é a abertura. A maior parte das atividades informais em Cuba é exercida pela comunidade negra, que também é a mais reprimida pelo Estado. O governo não está fazendo reformas econômicas estruturais, que implicariam o reconhecimento destas atividades. Mesmo no setor do turismo, os negros são os que menos podem exercer trabalho por conta própria, seja porque não têm carro para trabalhar como táxis ou casa para alugar aos turistas.

Como o sr. vê Cuba daqui a dez anos?
Integrada à comunidade do continente, como um país democrático, e com as dificuldades que pode ter qualquer país da América Latina nos próximos dez anos. E com um governo que se pareça com seu país.


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