Folha de S. Paulo


Corrupção na América Latina transcende governos, diz jornalista

Divulgação
O jornalista e advogado Hugo Alconada Mon, que lançou um livro na Argentina sobre corrupção
O jornalista e advogado Hugo Alconada Mon, que lançou um livro na Argentina sobre corrupção

Enriquecimento ilícito do casal Kirchner, escândalo dos hotéis na Patagônia, desvios nas verbas das Aerolíneas Argentinas, as malas de dinheiro do empresário amigo do poder Lázaro Báez, o caso Ciccone, envolvendo o ex-vice Amado Boudou, são apenas alguns dos casos de corrupção que ocorreram na Argentina durante as administrações de Néstor (1950-2010) e Cristina Kirchner em seus 12 anos de poder.

Em seu mais recente livro, "La Piñata" (ed. Planeta, importado), Hugo Alconada Mon, 41, principal repórter investigativo do jornal "La Nación", explica como esses episódios ajudaram a conformar o "capitalismo de amigos" em que se transformou um governo que, desde o princípio, sempre se vendeu como esquerda "nacional-popular".

Convidado para o Encontro Folha de Jornalismo, que ocorre nos próximos dias 18 e 19 em São Paulo, Alconada Mon conversou com a Folha sobre a cultura da corrupção na Argentina.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

*

Folha - Quais foram os governos mais corruptos da Argentina?

Hugo Alconada Mon - É equivocado atribuir a corrupção apenas aos Kirchner.

Ao lado de Carlos Menem, foram os mais corruptos depois da ditadura (1976-1983), mas isso também se explica por que foram as administrações que ficaram mais tempo no poder [Menem teve dois mandatos, de 1989 a 1999, Néstor, um, de 2003 a 2007, e Cristina, dois, de 2007 a 2015].

Levantamentos recentes mostram que, desde a redemocratização do país, em 1983, dos 750 casos de corrupção denunciados, apenas 3% receberam condenações.

Ou seja, o que impera na Argentina é a impunidade. Nenhum governo esteve imune [à corrupção].

Nem os que duraram pouco, como o de Fernando de la Rúa [cujo mandato durou de 1999 a 2001, interrompido pela crise que o obrigou a renunciar]?

Nem ele. Mesmo com pouco tempo, já esteve envolvido no caso do "suborno do Senado", pelo qual teve de responder judicialmente em um processo que durou quase 15 anos e que se encerrou há pouco por "benefício da dúvida" [falta de evidências suficientes].

No livro 'La Piñata', você aponta a recorrência de certos atores, que atravessam gestões e confirmam que a corrupção está de certa forma instalada, seja qual for o governo.

Sim, ao estudar os casos, sempre ia topando com uma série de nomes que se repetiam. São o que chamo de operadores e conectores.

Pessoas que se aproximam dos políticos num primeiro momento, quando chegam a um cargo, prometem resolver ou facilitar tal e tal trâmite, e quando se vê, são peças essenciais nos esquemas de corrupção.

Como organizei o livro apresentando os casos em ordem alfabética, fica fácil ver como os nomes se repetem em distintos verbetes, relacionados a políticos de distintos partidos.

Ou seja, assim como no Brasil e em outros países da América Latina, a corrupção opera de modo sistêmico, é algo que está além dos governos.

O novo governo de Mauricio Macri prometeu ser agressivo com a corrupção. Você acha que isso vai acontecer mesmo, ou foi apenas parte do discurso de campanha?

Creio que é preciso observar com cautela esse princípio de governo. Ele afirmou que que apresentará ao novo Congresso a "Lei do Arrependido", algo parecido ao sistema de delação premiada usado aí no Brasil.

Mas não deu muitos detalhes e ainda não sabemos o quanto ele realmente estimulará investigações como uma Operação Lava-Jato, pois poderia revelar aspectos nebulosos de suas próprias administrações, na cidade e no país, e comprometer suas relações com empresários.

O fato é que uma lei como essa teria de vir acompanhada de outras coisas.

Por exemplo?

Para se ter uma ideia, atualmente, o orçamento do Fútbol para Todos [transmissões das partidas dos campeonatos nacionais] é nada menos que 50 vezes maior do que os recursos usados na luta contra a corrupção. Macri vai mexer nisso? Não sabemos ainda.

Você acha que a Operação Lava-Jato, no Brasil, está tendo impacto na Argentina?

Sim. Foi uma espécie de "wake up call" (chamada de despertar).

Já há muitas vozes pedindo uma investigação inspirada nos moldes da que ocorre no Brasil. Porque aqui sempre comparávamos antes com o que países europeus ou os EUA ou a Austrália faziam para combater a corrupção, mas isso sempre parecia distante, algo que se passa em países mais desenvolvidos e que na Argentina não seria possível.

Quando, de repente, algo assim começa a acontecer no Brasil, justo ao lado, a sociedade começa a achar que é possível fazer aqui também.

Você vê o argentino muito preocupado com a corrupção?

Isso é relativo. Depende do momento econômico que estamos vivendo. Se as coisas vão bem, é difícil que esse problema incomode.

Por exemplo, Menem, enquanto teve êxito na economia e todos estavam felizes, era descrito como um "príncipe loiro de olhos azuis".

Depois, quando as coisas complicaram, começaram a chamá-lo dos nomes mais preconceituosos e terríveis: "negro", "turco", "ladrão", "corrupto". É cruel, mas é como opera o pensamento popular.

Talvez tenha sido uma das explicações da eleição de Macri, não? Ninguém parecia estar muito preocupado com os escândalos do kirchnerismo quando o PIB do país estava crescendo. Depois que a situação começou a se deteriorar, esses escândalos ficaram mais evidentes.

Sim, é possível. Colaborou para o desgaste da imagem do governo.

Qual foi o episódio da Lava-Jato que mais teve repercussão aí?

Sabe quando foi que as pessoas disseram "uau, isso é pra valer?". Quando prenderam Marcelo Odebrecht. Afinal, ninguém se choca tanto com a ideia de um político que se enrosca em seus erros, mas os ricos, os empresários irem para a prisão?

Isso foi algo novo, e causou muito impacto. Então creio que um efeito de contaminação do que está ocorrendo no Brasil é possível.

Você conta que entrevistou Antonio Di Pietro, promotor do caso Mãos Limpas da Itália, o que ficou dessa conversa?

Ele reforçou justamente isso, a ideia de que a única maneira de acabar com uma situação de corrupção sistêmica como a que vivemos é por pressão da sociedade.

Se não há um clamor da população, por que um político vai querer ir contra uma situação que, muitas vezes, o beneficia?

No caso argentino, como no Brasil, a questão do financiamento das campanhas também é vital para o combate à corrupção, não?

Sim, é um dos motores do sistema corrupto. As campanhas são caríssimas. Nessa última eleição argentina, Macri e Daniel Scioli [o candidato do governo Cristina] gastaram fortunas. Ou seja, eleger-se aqui se transformou em algo impossível de se fazer sem a ajuda de empresas e particulares.

E o que essas empresas e particulares fazem depois, obviamente?

Cobram seus interesses. Pedem ajuda em seus projetos, e aí a coisa segue.

Por que seu livro mais recente se chama "La Piñata"?

Foi inspirado no caso da "piñata" nicaraguense.

Nos últimos dias da primeira presidência de Daniel Ortega (1985-1990), que havia perdido as eleições para Violeta Chamorro, em 1990, realizou-se um verdadeiro saque de fundos públicos e propriedades, que foram distribuídos entre grandes nomes do sandinismo, incluindo Ortega.

Ou seja, a corrupção é um tema latino-americano, sem dúvida. Mas sou otimista, acho que algumas mudanças começam a ser pedidas com mais ênfase pela sociedade. Aí sim as coisas podem começar a acontecer.

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RAIO-X
HUGO ALCONADA MON, 41

Carreira
Secretário-assistente de Redação e principal repórter investigativo do 'La Nación', foi correspondente em Washington (2005-09); recebeu prêmios da Sociedad Interamericana de Prensa e da Transparência Internacional

Formação
Direito na Universidade de La Plata; pós-graduado pela Universidade de Navarra

Livros
"Los Secretos de la Valija", "Las Coimas del Gigante Aleman", "La Piñata"


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