Folha de S. Paulo


Governo da Síria aplica política de 'extermínio' contra presos, diz ONU

Pessoas detidas pelo governo sírio estão sendo mortas em uma escala equivalente à de uma política de Estado de "extermínio" da população civil, um crime contra a humanidade, disseram nesta segunda-feira (8) investigadores das Nações Unidas.

A comissão de inquérito da ONU pediu ao Conselho de Segurança a imposição de "sanções específicas" a funcionários civis e militares sírios de alto escalão responsáveis ou cúmplices de mortes, torturas e desaparecimentos sob custódia, mas não chegou a nomear os suspeitos.

Os peritos independentes disseram que também tinham documentos sobre execuções em massa e torturas de prisioneiros por dois grupos jihadistas, a Frente al-Nusra e o Estado Islâmico (EI).

Eles disseram que essas ações constituem crimes de guerra e, no caso do Estado Islâmico, também crimes contra a humanidade.

O relatório "O que os olhos não veem, o coração não sente: mortes na prisão" abrange o período de 10 de março de 2011 a 30 de novembro de 2015.

O documento tem como base entrevistas com 621 sobreviventes, testemunhas e provas recolhidas pela equipe liderada pelo presidente Paulo Pinheiro.

"Ao longo dos últimos quatro anos e meio, milhares de detidos foram mortos, enquanto estavam sob a custódia das partes em conflito", de acordo com a Comissão de Inquérito sobre a Síria.

Salvatore Di Nolfi/Efe
SDN103. GINEBRA (SUIZA), 08/02/2016.- El presidente de la comisión de juristas de la ONU que investiga los crímenes de guerra en Siria, el brasileño Paulo Pinheiro, ofrece una rueda de prensa en la sede de Naciones Unidas en Ginebra, Suiza, el 8 de febrero del 2016. EFE/Salvatore Di Nolfi ORG XMIT: SDN103
Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da comissão de juristas da ONU que investiga crimes de guerra na Síria

APOIO RUSSO

A crítica da ONU em relação ao governo de Damasco chega em um momento em que suas forças vêm avançando com a ajuda de ataques aéreos russos.

Um ataque do governo apoiado por Moscou, perto da cidade de Aleppo neste mês, marca uma das maiores mudanças das circunstâncias da guerra de cinco anos e ajudou a torpedear as negociações de paz na semana passada.

Pinheiro, ao observar que as vítimas eram em sua maioria homens civis, disse em uma entrevista coletiva: "Nestes cinco anos, nunca foram visitadas essas instalações descritas no nosso relatório, e pedimos várias vezes ao governo que fizesse isso".

Não houve resposta imediata por parte do governo do presidente Bashar al-Assad, que rejeitou relatórios anteriores.

Onde fica Aleppo

TODA A HIERARQUIA

"Os funcionários das prisões, seus superiores em toda a hierarquia, altos funcionários em hospitais militares e o corpo da polícia militar, bem como o governo, estavam cientes de que estavam acontecendo mortes em escala maciça", disse Pinheiro.

"Assim, concluímos que havia 'bases razoáveis' –que é o (princípio) que aplicamos– para crer que a conduta descrevia proporções de extermínio de um crime contra a humanidade."

Dezenas de milhares de pessoas são detidas pelo governo a qualquer momento, e outras milhares "desapareceram" depois de serem detidas por forças estatais ou desapareceram após serem sequestradas por grupos armados, segundo o relatório.

Por meio de prisões em massa e assassinatos de civis, inclusive por fome e recusa de tratamento médico, as forças estatais estão "envolvidas em múltiplas execuções de crimes, em quantias compatíveis com um ataque sistemático e generalizado contra a população civil".

Havia motivos razoáveis para crer que "altos oficiais", incluindo os chefes de departamentos e diretorias no comando de locais de detenção e da política militar, bem como seus superiores civis, sabiam das mortes e dos corpos enterrados anonimamente em valas comuns.

Ammar - 6.fev.2016/Xinhua
(160206) -- DAMASCO, febrero 6, 2016 (Xinhua) -- El ministro de Relaciones Exteriores de Siria, Walid al-Moallem, participa durante una conferencia de prensa, en Damasco, capital de Siria, el 6 de febrero de 2016. El ministro de Relaciones Exteriores de Siria, Walid al-Moallem, advirtió este sábado a Arabia Saudí contra una eventual intervención militar terrestre en Siria y dijo que quienes entren en territorio sirio sin consentimiento de su gobierno
O ministro das Relações Exteriores da Síria, Walid al-Moallem, durante entrevista à imprensa em Damasco

Portanto, eles são "individualmente responsáveis criminalmente", de acordo com os investigadores, que pedem novamente que a Síria seja encaminhada ao promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), uma decisão que só o Conselho de Segurança pode tomar.

"Depende da vontade política dos Estados. Aparentemente, para a Síria agora não há nenhuma –há uma impunidade total, infelizmente", disse Carla del Ponte, membro da comissão.

"Ainda estamos à espera de luz verde para a justiça internacional", disse ela.

"O Conselho de Segurança não faz nada e não pode fazer nada por causa do veto", acrescentou, em referência à Rússia, aliado de Assad, que várias vezes utilizou seu poder como membro permanente do Conselho para bloquear resoluções contra Damasco.

NOMES NO COFRE

Ao longo dos últimos quatro anos, os investigadores elaboraram uma lista confidencial de suspeitos de crimes de guerra e de unidades de todas as partes do conflito, documento que é mantido em um cofre da ONU em Genebra.

Pinheiro disse que foram incluídos "novos nomes", mas não deu detalhes.

Del Ponte revelou que os investigadores da ONU forneceram assistência jurídica a várias autoridades em resposta a 15 pedidos de informação sobre os combatentes estrangeiros na Síria. Ela se recusou a identificar os países envolvidos, mas depois disse à Reuters: "Esses são criminosos de nível baixo e médio, porque são combatentes estrangeiros, não são de alto escalão".

Sedat Suna/Efe
SDT03 KILIS (TURQUÍA) 08/02/2016.- Refugiados esperan en el paso fronterizo de Öncüpinar, en la provincia de Kilis, Turquía, hoy, 8 de febrero de 2016, para regresar a Siria. Decenas de miles de sirios se agolpan en la frontera con Turquía tras huir de la violencia en la provincia siria de Alepo, sin acceso a ayuda humanitaria o atención médica a la espera de entrar en el país vecino que mantiene el cruce de Bab al Salama cerrado. Pese a la precaria situación, el gobierno turco anunció ayer que no tenía intención de facilitar el paso a los refugiados en un futuro cercano. EFE/Sedat Suna ORG XMIT: SDT03
Refugiados sírios na passagem de Öncüpinar, na fronteira com a Turquia

A Frente al-Nusra, aliada da Al Qaeda, e o Estado Islâmico, que proclamou um "califado" em faixas da Síria e do Iraque, realizaram execuções em massa de soldados do governo capturados e de civis submetidos a "julgamentos ilícitos" por tribunais da sharia que decretaram penas de morte, de acordo com o relatório.

"Devido ao seu controle exclusivo de grandes territórios, seu comando centralizado e estrutura de controle, o chamado Estado Islâmico estabeleceu centros de detenção, que saibamos até agora, em Raqqa, Deir al-Zor e Aleppo.

Violações graves foram documentadas nesses lugares, incluindo tortura e execuções em massa", disse Pinheiro.

"A responsabilidade por esses e outros crimes deve fazer parte de qualquer solução política", disseram os investigadores, cinco dias depois que as negociações de paz patrocinadas pela ONU foram suspensas sem nenhum resultado.

MORTOS

Raneem Matouq, filha do destacado advogado Khalil Matouq, desaparecido desde outubro de 2012, disse que foi detida por dois meses em 2014 na Seção 227 da Segurança Militar de Damasco, depois de ser presa por seu "ativismo pacífico" quando era estudante.

Presos no centro de detenção, que se calculam em vários milhares, morreram por tortura, doenças e condições carcerárias assustadoras, incluindo falta crônica de alimentos, de acordo com o documento da ONU.

"Eu fiquei com outras dez garotas em um quarto de 1,5 metro por dois metros. Para os rapazes, havia uma cela do mesmo tamanho, mas havia 30, 40 homens, com mortos", disse Matouq à Reuters durante uma visita a Genebra na semana passada com a Anistia Internacional.

"Estava cheio de insetos, dormíamos no chão, não havia vaso sanitário", disse ela. "Podíamos ir ao banheiro três vezes por dia, chamávamos de 'piquenique', porque podíamos caminhar do lado de fora. Às vezes, encontrávamos corpos dentro do banheiro. Era horrível demais, sempre eram homens."

Reportagem de STEPHANIE NEBEHAY; edição de RALPH BOULTON e PETER GRAFF


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