Folha de S. Paulo


Professores sírios dão aulas a crianças em campo de refugiados no Líbano

No campo de refugiados em que Fatima Khaled vive com suas duas filhas, no leste do Líbano, apenas três crianças conseguiram vagas na escola local.

Assim, quando os pais de crianças que vivem no campo descobriram que ela era educadora, imploraram para que desse aulas aos seus filhos.

Professora desempregada fugida de Damasco há três anos, Khaled não conseguiu encontrar emprego no Líbano.

"Vim para cá e tentei encontrar emprego, mas ninguém quis me contratar", disse. "Os pais do campo sugeriram a ideia. Disseram que eu podia lecionar e ajudar as crianças".

Khaled, 30, vem lecionando alfabetização e aritmética básica há mais de um ano, primeiro na sala de sua casa e agora em um galpão que seu marido construiu para isso.

Agora, organizações humanitárias se reunirão em Londres na quinta-feira (4) para discutir como financiar a educação dos refugiados sírios.

E Khaled responde por uma das muitas iniciativas anônimas e desprovidas de recursos que ajudam a suprir carências diretamente nos locais mais necessitados.

Com as escolas locais sobrecarregadas e as verbas assistenciais destinadas à educação insuficientes até o momento, apenas 59% das 338 mil crianças sírias em idade escolar refugiadas no Líbano vêm recebendo educação, de acordo com a agência de assistência aos refugiados das Nações Unidas (Acnur).

Cerca de 238 escolas públicas libanesas começaram a oferecer um segundo turno de aulas para acomodar mais refugiados, mas a ONU estima que para acomodar a todos o número de escolas que oferecem o segundo turno precisaria triplicar.

VAZIO EDUCACIONAL

Essas iniciativas de ensino ajudam a ocupar mais que o vazio educacional para os refugiados.

A carreira letiva de Ahmed Shareef quase chegou ao fim quando um combatente tunisiano do Estado Islâmico o convocou para uma conversa em sua aldeia de Atchan Oeste, no subúrbio da cidade síria de Aleppo.

Como diretor da escola local, Shareef havia ordenado que um estudante adolescente aparasse a barba, e o militante queria saber o motivo.

"Eu não pedi que ele tirasse a barba, só que a aparasse", respondeu Shareef.

O militante ordenou que ele retirasse do currículo as aulas de filosofia e história, porque as duas coisas eram "blasfêmias", e exigiu que as meninas fossem excluídas da escola depois de concluírem a sexta série.

Quando Shareef quis saber por quê, o militante respondeu: "Respondo quando você deixar crescer a barba".

Não muito depois, Shareef, 38, fez as malas e fugiu para o Líbano com a mulher e os filhos.

Passados dois anos, Shareef ensina crianças sírias a ler e a escrever, em uma barraca com paredes de madeira e teto de lona em Qab Elias, uma aldeia no vale de Bekaa, onde a maioria das pessoas que deixaram sua aldeia para escapar aos combates estão refugiadas.

ONDE FICA QAB ELIAS

Já que nenhuma das cerca de cem crianças do campo de refugiados conseguiu vaga em uma escola, e que Shareef não conseguiu encontrar emprego como professor, ele dá aulas gratuitas a crianças entre 5 e 12 anos que tiveram sua educação interrompida pelo conflito.

Em um dia normal, mais de 30 alunos ruidosos ocupam a barraca. O cronograma de aulas é determinado pelo clima: quando chove e a sala é inundada, as aulas são suspensas.

Como Khaled, Shareef não recebe salário. Ele vive com os US$ 100 mensais que o Acnur destina à sua família.

Mas Khaled diz que o dinheiro não é motivação para ela. O trabalho, mesmo que não remunerado, é tão importante para a professora quanto para os alunos.

"Não sei viver sem ensinar", diz, sorrindo. "Leciono desde os 18 anos, e quando cheguei aqui não suportei ficar sem fazer nada".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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