Folha de S. Paulo


NY promete reforçar segurança em abrigo de sem-teto após assassinato

Deven Black tinha 62 anos e sua vida estava desabando. Em poucos anos ele passara de professor respeitado e premiado a infrator desempregado.

Seu casamento tinha se desfeito e ele perdera sua casa, morando em seu carro por algum tempo e mergulhando numa depressão que ficou quase sem tratamento. Ele não tinha para onde ir.

Anthony White tinha apenas 21 anos e um plano para sua vida. Estava ansioso para conseguir um apartamento para viver, mas seu emprego mal pago na J.C. Penney não lhe permitia pagar um aluguel.

Ele tinha sonhos —ser um rapper famoso— e problemas de saúde mental. Precisava qualificar-se para ter direito a moradia subsidiada para pessoas de baixa renda. E sabia exatamente como fazê-lo.

Os caminhos de Black e White —um deles descendente, o outro aparentemente em ascensão— colidiram no abrigo Boulevard para sem-teto, em Manhattan, na segunda-feira, graças ao jogo de azar que é o sistema de abrigos de Nova York.

Chang W. Lee/The New York Times
A security check at the Boulevard Homeless Shelter in New York, Jan. 29, 2016. Deven Black, 62, who was staying at the facility, was found dead Wednesday, his throat slashed, prompting the city to announce it would increase security at 27 shelters for people with mental-health issues by adding police officers and clinical staff. (Chang W. Lee/The New York Times) ORG XMIT: XNYT 162 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Detector de metais na entrada do abrigo Boulevard, em Nova York

Os dois homens, que não se conheciam, acabaram dividindo um quarto do abrigo para homens com problemas de saúde mental.

Na noite de quarta-feira Black foi encontrado morto, degolado, e White estava foragido. Para as autoridades da cidade sobraram perguntas sobre como oferecer abrigo a todos que necessitam dele, mesmo pessoas com problemas graves de saúde mental, mesmo que não estejam recebendo tratamento ou tomando sua medicação.

"Minhas condolências sinceras à família Black", disse a irmã de Anthony White, LaSandra White, mas duvidou que seu irmão tivesse realmente cometido o crime.

"Mas esse é um problema do sistema. Como isso pôde acontecer? Como pôde uma arma ter entrado no abrigo? É para ser um abrigo para pessoas com problemas mentais. O sistema não está atendendo à nossa comunidade, não está dando assistência às pessoas com doenças mentais."

Na sexta-feira, reagindo ao crime, a prefeitura anunciou que vai intensificar a segurança nos 27 abrigos para pessoas com problemas de saúde mental. Funcionários do Departamento de Serviços para Sem-Teto, responsável pelo sistema de abrigos, chegaram ao abrigo de Boulevard na noite de sexta-feira. Moradores do abrigo disseram que os agentes estavam revistando o prédio de cinco andares.

O assassinato de Black ressaltou os problemas que atingem o sistema de abrigos, que acolhe cerca de 58 mil pessoas e é obrigado a aceitar qualquer pessoa que peça uma vaga. Mas muitos sem-teto têm medo dos abrigos devido ao uso de drogas, aos roubos e à violência.

Os abrigos que recebem doentes mentais são vistos como especialmente perigosos. Na prática, às vezes funcionam como hospitais mentais, porque os hospitais raramente têm leitos psiquiátricos suficientes para atender à demanda. Mas os abrigos são mal equipados para receber pessoas com doenças mentais graves.

No ano passado o prefeito Bill de Blasio e sua mulher, Chirlane McCray, para quem o atendimento a doentes mentais é prioridade, lançaram o programa NYC Safe, que pretende lidar com doenças mentais não tratadas que atingem pessoas potencialmente violentas. O programa inclui verba de US$ 3,5 milhões anuais para melhorar os serviços clínicos nos abrigos para sem-teto.

Mas Anthony White, visto pela última vez fugindo do abrigo quando um segurança abriu a porta do quarto que ele dividia com Black, não estava inscrito no NYC Safe. Ele nunca tinha sido considerado violento.

Um policial não autorizado a falar sobre White disse que normalmente um acusado de um crime tão violento teria uma ficha criminal longa. O policial descreveu a ficha de White como insignificante: ele só tinha uma detenção anterior por uma infração leve.

O abrigo Boulevard é administrado pelo Comitê de Residentes de Bowery, que há anos presta serviços a sem-teto.

O design do prédio não é apropriado a um abrigo —o lugar tem quartos de cada lado de corredores, em vez de espaços grandes, próprios para serem dormitórios coletivos—, mas, mesmo assim, é um abrigo há décadas, administrado por uma ou outra entidade sem fins lucrativos.

No máximo seis homens dividem cada quarto. Alguns dos quartos eram ocupados por apenas dois homens, um arranjo que às vezes resultado em um tipo de agressão que os moradores chamam de "síndrome do quarto de dois homens". Embora haja seguranças e um detetor de metais, moradores do abrigo disseram que alguns homens levavam facas para dentro, escondidas em seus sapatos.

Já houve incidentes de violência anteriores no abrigo. De acordo com o Departamento de Polícia, em 2013 um morador foi morto a facadas durante uma briga com um de seus colegas de quarto.

Dos dois homens, White foi o primeiro a chegar ao abrigo, em meados de dezembro.

White tinha se alternado entre viver com sua família e em famílias adotivas temporárias; quando chegou à escola secundária, estava vivendo com sua mãe.

Ele estudou na Academy of Urban Planning, um colégio público pequeno em Bushwick, no Brooklyn. Era baixo (1,60 metro) e usava fones de ouvido constantemente. White vivia ouvindo o rap de artistas como Drake e Jay Z e estava sempre criando sua própria música. Na escola, era conhecido por se dar bem com todo o mundo, mas não falava muito, segundo sua irmã.

A mãe de White, Sametha White, disse que sua família foi despejada do apartamento em que vivia depois de ter problemas com o programa de aluguel subsidiado da prefeitura, indo acabar em um abrigo para sem-teto no Bronx. Em 2013, no último ano do colégio, White abandonou os estudos.

Nesse mesmo ano ele foi levado ao Hospital Brooklyn quando a polícia recebeu uma ligação sobre uma pessoa emocionalmente perturbada. White não estava sendo violento, mas estaria agindo de modo estranho, segundo o policial.

Em 2014, quando estava morando com seu pai, White foi hospitalizado. A família não falou muito sobre isso. Não foi mencionado nenhum diagnóstico, apenas um antes e depois.

"Meu pai nos telefonou e disse: 'Tem algo errado. Ele não está normal'", contou a irmã. "Eles davam alta a meu irmão toda hora. E às vezes ele explodia. Meu pai o acalmava, ou então ele voltava ao hospital e então lhe davam alta."

White conseguiu um emprego na J.C. Penney, contou sua mãe. Ele queria ser adulto, queria morar sozinho. Então no ano passado ele recorreu ao sistema de abrigos. Se ele continuasse no emprego e passasse algum tempo morando no abrigo, teria direito a entrar no programa de moradia subsidiada para pessoas de baixa renda. No dia 15 de dezembro ele foi encaminhado ao abrigo Boulevard.

White passou o Natal com sua família. Ele parecia estar feliz, dando presentes a seus sobrinhos. Mas no dia seguinte, de volta ao abrigo, apresentou comportamento estranho, perturbando outros moradores. Foi enviado ao Centro Hospitalar Metropolitan. Foi orientado a tomar seus medicamentos e ir às reuniões de grupos de apoio e disse que o faria. Na mesma noite, segundo uma pessoa informada sobre a situação, ele foi mandado de volta ao abrigo.

Outros residentes do abrigo disseram que White estava cada vez mais explosivo, em dado momento girando os braços e jogando fora cédulas de dólar. Ele se queixou com um de seus irmãos de que alguém tinha roubado seu iPod. Sua mãe disse que falou com ele ao telefone e que ele disse que estava bem e estava tomando seus remédios.

Mas White estava tão convencido de que outras pessoas estavam roubando dele que na semana passada os funcionários do abrigo lhe deram um cadeado novo para seu armário.

Leonard McCaffrey, outro morador do abrigo, disse que White avisou aos homens que o incomodavam que "lhes daria um 150", ou seja, 150 pontos no rosto.

"Ele explodia de repente", disse McCaffrey.

No domingo, depois de outra explosão, White foi novamente enviado ao Metropolitan. Dessa vez, passou a noite no hospital. Na segunda-feira, teve alta e foi mandado de volta ao Boulevard.

Dessa vez ele tinha um novo colega de quarto.

A trajetória de Deven Black sempre foi anticonvencional; ele experimentava novas identidades conforme o momento. Ele abandonou o ensino secundário e a faculdade. Com 20 e poucos anos, trabalhou como repórter para uma rádio de Cape Cod.

Quando retornou a Nova York, foi gerente do pub North Star, perto do mercado de peixes de Fulton. Em todo lugar onde ia, ele motivava as pessoas.

"Se não fosse por Deven, acho que eu nunca teria tido a profissão que tenho", comentou Steven Brown, que ligava constantemente para o programa de rádio de Black quando era adolescente e hoje é repórter da estação WBUR, em Boston.

Black acabou conseguindo seu diploma universitário e foi trabalhar na escola Castle de ensino médio, no Bronx. Ali, depois de passar algum tempo dando aula a alunos especiais, tornou-se bibliotecário.

Em entrevista que deu ao "The School Library Journal" em 2013, Black detalhou seus esforços para aprimorar a biblioteca, dotando-a de computadores e atualizando seu acervo. Jonas Black, seu filho, se lembra de ter ajudado seu pai a descartar livros superados com títulos como "A vida dos Orientais".

Black era pai de família. Como sua foto no Facebook ele postou uma foto antiga de sua mulher e seu marido.

Mas, contaram parentes e amigos, ele começou a deteriorar e apresentar comportamento errático. Ele tinha tido problemas de saúde mental por muito tempo, disse Jonas, mas nunca recebera um diagnóstico oficial. Black se internou brevemente. Ele fez más escolhas com dinheiro, virando vítima de fraudes online. Seria demência? Transtorno bipolar? Ninguém sabia dizer.

"Ele nunca foi diagnosticado realmente", disse Emily Feiner, assistente social que foi amiga de Black e sua mulher por 25 anos.

"Ele era compulsivo e tinha pensamentos quase ilusórios que influenciavam as escolhas que fazia. Ele se colocava em risco grave."

Uma investigação do Departamento de Educação da cidade em 2014 concluiu que Black se comportara de uma maneira que incomodou um estudante. Ele foi suspenso por dois meses, segundo um funcionário da prefeitura. Não havia outras informações disponíveis.

Em julho desse ano, Black e uma mulher que ele conheceu online começaram a depositar cheques falsificados em bancos de Nova York, disseram promotores federais. Ele então aguardava alguns dias antes de sacar dezenas de milhares de dólares em dinheiro vivo.

Em novembro Black, num tribunal federal, Black se confessou culpado de fraude bancária. Foi instruído a devolver US$146 mil aos bancos. Além disso, recebeu ordens de seguir tratamento de saúde mental ambulatorial e a continuar tomando seus medicamentos.

Feiner disse que não houve acompanhamento para garantir que ele tomasse os medicamentos prescritos. "E então ele estava sem-teto e não tinha como obter os remédios", ela disse.

Jonas Black contou que seu pai passou tempo vivendo em seu carro. Em algum momento do ano passado ele acabou inscrito no sistema de abrigos. Na segunda-feira foi enviado ao abrigo Boulevard.

Dois homens que não se conheciam, um quarto. Black era tão cortês que quando outro morador do abrigo, Ronald Venticinque, lhe disse que seu apelido era "Bananas", Black o chamou "Mr. Bananas". Venticinque lhe recomendou cuidado: Black tinha deixado sua mala cheia de roupas e uma sacola grande de lona numa mesa do refeitório, sem pedir a ninguém que cuidasse.

White continuou a pôr sua raiva para fora, reclamando dos furtos e ameaçando retaliar. Ele agitava os braços nos rostos de outros homens, que mantinham distância dele.

Deven Black não podia manter distância. Na noite de quarta-feira McCaffrey ouviu White gritando no quarto um andar debaixo do dele. Minutos mais tarde, ouviu um funcionário gritando "Meu Deus!".

Tradução de CLARA ALLAIN.


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