Folha de S. Paulo


Trinca de mulheres reinventa bloco de esquerda na política de Portugal

Junte uma atriz que sabe fazer campanha eleitoral com uma jovem economista que se destaca em comissões de inquérito e acrescente uma candidata presidencial com grande bagagem. O resultado é um multivitaminado "detox" político capaz de acordar um moribundo.

Foi exatamente isso que aconteceu em Portugal com o Bloco de Esquerda (BE), hoje terceira maior força política nacional. Há três meses, antes das eleições parlamentares, era uma legenda sem expressão, que havia perdido tudo nas eleições de 2011. Quando seria de esperar o fim do BE, nascido em 1999, surgiram três rostos: Mariana Mortágua, 29, licenciada e mestre em economia pelo Instituto Universitário de Lisboa, doutoranda na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres; Catarina Martins, 42, atriz, política e líder do BE; e Marisa Matias, 39, socióloga, deputada europeia e candidata à Presidência pelo Bloco.

Paulete Matos/Divulgação
Da esquerda para a direita, Catarina Martins (lider do Bloco de Esquerda), a deputada Mariana Mortagua e Marisa Matias (candidata do BE a Presidencia); de costas, Joana, irma de Mariana e tambem deputada Foto:Paulete Matos/Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Da esquerda para a direita, Catarina Martins (líder do Bloco de Esquerda), a deputada Mariana Mortagua e Marisa Matias (candidata do BE à Presidência); de costas, Joana, irmã de Mariana e também deputada

Marisa não vencerá as eleições deste domingo (24); segundo as pesquisas, o eleito em primeiro turno será o independente (de centro-direita) Marcelo Rebelo de Sousa. Esse antecipado fracasso do BE contrasta com o surpreendente resultado do pleito parlamentar em outubro. O BE possui 19 cadeiras na Assembleia da República.

Com o país mergulhado nas medidas de austeridade impostas pela "troica" (FMI, União Europeia e Banco Central Europeu) e ainda em choque ante o grande escândalo financeiro que levou à derrocada do BES (Banco Espírito Santo), Mortágua foi o destaque da comissão de inquérito que investigou o banco.

Questionada sobre seu protagonismo no caso em entrevista à Folha, Mortágua disse que se preparou bem, mas que houve influência do fator surpresa: "É mais fácil surpreender as pessoas quando elas não esperam muito de nós, não é?", diz a deputada, praticante de kickboxing.

ELEIÇÕES EM PORTUGAL - País vota para presidente neste domingo, 24

CAMINHO ABERTO

Com o destaque que Mortágua teve em ano eleitoral, o caminho estava aberto para a esquerda voltar a ganhar força. "Mariana Mortágua e Catarina Martins foram capazes de reinventar o Bloco de Esquerda", afirma Viriato Soromenho-Marques, professor de filosofia social e política na Universidade de Lisboa.

Mãe de duas filhas, de 9 e 13 anos, Martins surgiu como uma espécie de alternativa para muitos eleitores de diferentes partidos. Para Soromenho-Marques, o discurso feminino revelou "maior capacidade de acolhimento entre os descontentes".

Esse descontentamento está ligado às políticas restritivas do premiê anterior, o social-democrata Pedro Passos Coelho, visto por seus críticos como "bom aluno da 'troica' e 'eleito que não governou'". Por outro lado, os rivais do socialista António Costa, o atual premiê, veem como desastrosa sua campanha, que cantou vitória depois de anunciar a derrota.

Analistas consideram a participação do Bloco de Esquerda fundamental na obtenção da maioria no Parlamento que permitiu a Costa assumir o governo. Houve uma coligação entre o BE, o Partido Comunista e os verdes, após mais de 50 dias de impasse.

À Folha Catarina Martins diz que o BE "cedeu muito porque também conquistou muito". "Ser mulher ajuda e desajuda", afirma Martins. "Vivemos num país muito machista, em que muito facilmente se desvalorizam uma mulher e as suas posições. Mas depois, quando fiz campanha, o paternalismo ocorreu."

Para o analista e doutor em ciência política Pedro Adão e Silva, a questão geracional pesou mais que a de gênero na eleição parlamentar. "Hoje já não existe o bloqueio pós-25 de Abril [Revolução dos Cravos, em 1974], e o eleitorado estava à espera de uma união da esquerda porque já não via razão para essa não existir".

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos diz que as mulheres "começam a ter o seu protagonismo" graças às últimas décadas de lutas dos movimentos feministas. Partilha da mesma opinião o colunista João Miguel Tavares, para quem o processo é natural e visível já nas universidades.

Em 1979, Maria de Lourdes Pintasilgo tornou-se a primeira mulher "primeiro-ministro" de Portugal —os jornais não usavam o termo no feminino. Hoje, aponta Tavares, os tempos são outros, e as mulheres políticas já se podem assumir verdadeiramente femininas. Portugal tem hoje 79 mulheres políticas —76 deputadas em 230 mandatos.

ECONOMIA

Os especialistas afirmam ainda que Portugal vive um momento econômico preocupante. Ter uma coalizão de esquerda no governo, dizem, não ajuda a compor o quadro de um país europeu que sofreu intervenção e tem de cumprir regras e orçamentos. "É importante não esquecer o que aconteceu na Grécia", alerta Soromenho-Marques, para quem será necessário fazer concessões.

Será que os portugueses têm razões para ter medo? Questionada, Catarina Martins responde: "O medo é a irracionalidade de aceitarmos ficar cada vez piores por alguma coisa que não sabemos bem o que é. E que, por não a combatermos, acaba por acontecer."


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