Folha de S. Paulo


Paquistanês de 15 anos decepa mão após ser acusado de blasfêmia

Tarde da noite, o imã Shabir Ahmad levantou os olhos em meio às orações em sua mesquita para ver um garoto de 15 anos se aproximar com um prato na mão esquerda, estendida. Nele havia a mão direita do rapaz, decepada havia pouco tempo.

Ahmad não hesitou. Fugiu da mesquita e deixou o povoado, na província de Punjab.

Mais cedo naquela noite de 10 de janeiro, ele havia denunciado o menino como um blasfemo, uma acusação que no Paquistão pode matar uma pessoa —mesmo quando a acusação é falsa, como foi nesse caso.

Rahat Dar - 9.mar.2013/Efe
Pertences de pessoas acusadas de serem blasfemas são queimados em Lahore em 2013
Pertences de pessoas acusadas de serem blasfemas são queimados em Lahore em 2013

O menino, Anwar Ali, filho devoto de um trabalhador pobre, frequentava um grupo noturno de oração na mesquita, na aldeia de Khanqah, quando Ahmad pediu que levantassem as mãos aqueles que não amavam o profeta Maomé.

Pensando que o clérigo tinha perguntado por aqueles que amavam o profeta, Anwar levantou a sua, de acordo com testemunhas e familiares do garoto.

Ele percebeu o erro quando viu que sua mão era a única levantada e rapidamente a abaixou. Mas Ahmad já estava gritando "blasfemo!" para ele, ao lado de muitos outros na multidão. "Você não ama seu profeta?", disseram, enquanto o menino fugia em desespero.

Anwar voltou para casa, encontrou uma foice afiada e cortou a mão direita na mesma noite. Quando ele a mostrou para o clérigo, deixou claro que era uma oferta para absolver o que havia sido percebido como pecado.

A polícia rapidamente deteve o mulá e o prendeu, mas os líderes religiosos locais protestaram, e as autoridades recuaram e o soltaram.

Depois que a imprensa internacional começou a dar a notícia no fim de semana, as autoridades prenderam Ahmad novamente no domingo (17), por terrorismo e outras acusações.

"Não há nenhuma evidência física de que o clérigo esteja envolvido, mas ele foi acusado por incitar e despertar as emoções das pessoas a um nível tal que o garoto cometeu esse ato", disse o chefe de polícia do distrito, Faisal Rana.

A família do garoto, no entanto, argumenta que o clérigo não fez nada de errado e que não deve ser punido. "Temos a sorte de ter esse filho que ama tanto o profeta Maomé", disse Muhammad Ghafoor, pai de Anwar, em uma entrevista por telefone.

"Seremos recompensados por Deus, por conta disso, no mundo eterno." Anwar também se recusou a registrar acusações contra o mulá. "O que eu fiz foi por amor ao profeta Maomé", disse.

A blasfêmia é um assunto complicado no Paquistão, onde um confuso conjunto de leis a consagrou como pena capital, mas também torna praticamente impossível para o acusado se defender judicialmente. Mesmo repetir publicamente detalhes da acusação equivale à blasfêmia.

Tais casos quase nunca chegam aos tribunais, no entanto. A mais mínima acusação de que aconteceu uma blasfêmia tem o poder de despertar linchamentos ou assassinatos por parte de quadrilhas.

O governador de Punjab, Salman Taseer, foi assassinado pelo seu próprio guarda-costas em 2011, depois de haver criticado as leis de blasfêmia do país e defender uma mulher cristã que havia sido falsamente acusada sob essas leis.

O assassino é um herói nacional para muitos paquistaneses devotos: sua cela se tornou um lugar de peregrinação, e uma mesquita recebeu seu nome, como homenagem.

Na segunda-feira (18), o Paquistão suspendeu uma proibição de três anos em relação ao YouTube, que havia encerrado, por conta de acusações de emitir vídeos anti-islâmicos.

O governo anunciou que o Google, dono do YouTube, havia concordado em lhe dar o direito de bloquear conteúdo censurável. O governo paquistanês bloqueia milhares de páginas da internet que considera ofensivas.

"Nos tornamos uma sociedade tão intoxicada por coisas negativas em nome da religião que os pais se sentem orgulhosos de enviar seus filhos à jihad e que morram em nome de tais atividades", disse I.A. Rehman, secretário-geral da Comissão de Direitos Humanos do Paquistão.

"O governo precisa fazer mais para educar as pessoas e se pronunciar contra o extremismo."

Anwar Ali nem sequer foi a um hospital depois da sua amputação. Fizeram-lhe uma atadura no braço direito, em uma clínica da aldeia, e ele foi para casa. Os integrantes da família enterraram sua mão no cemitério local.


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