Folha de S. Paulo


Drama diplomático de 14 meses precedeu troca de presos de EUA e Irã

Por um ano, funcionários do governo Obama se encontraram em segredo com suas contrapartes no governo iraniano, em um esforço para libertar norte-americanos aprisionados pela república islâmica. Por fim, no final do ano passado, um acordo para a libertação dos prisioneiros parecia praticamente selado.

No entanto, os iranianos chegaram para a última sessão secreta em um hotel de Genebra levando uma proposta completamente nova que exigia a libertação de dezenas de iranianos aprisionados nos Estados Unidos, na prática retornando à sua lista inicial de exigências, há muito tempo descartada.

Brendan Smialowski - 15.set.2014/AFP
Brett McGurk (Esq.), vice secretário de Estado adjunto para o Iraque eo Irã do EUA, ouve conversa entre o secretário de estado dos EUA John Kerry (2ª da esq.) e do presidente iraquiano Fuad Masum (Dir), auxiliado por um intérprete, antes de uma reunião, em Paris (França). Os líderes mundiais estão reunidos sobre estratégias para lidar com a ameaça no Oriente Médio a partir de ISIS. *** Brett McGurk (L), deputy US Assistant Secretary of State for Iraq and Iran, listens as US Secretary of State John Kerry (2nd L) and Iraqi President Faud Masum (R), helped by an interpreter, speak prior to a meeting at the Iraqi Embassy September 15, 2014 in Paris. World leaders are meeting about strategies to address the threat in the Mideast from ISIS. AFP PHOTO / POOL / BRENDAN SMIALOWSKI ORG XMIT: BSX24
McGurk e Kerry conversam com o presidente iraquiano, Fuad Masum, em Paris

Os norte-americanos ficaram atônitos. "Já conversamos sobre isso", disse Brett McGurk, que estava liderando a equipe de negociação dos Estados Unidos. Apesar disso, os iranianos foram inflexíveis, de acordo com funcionários do governo norte-americano que estiveram a par da reunião.

Alguma coisa parecia ter mudado no país persa, como parte da batalha contínua travada internamento sobre como lidar com os Estados Unidos. Ao que parecia, alguém que detinha posição de poder no Irã não desejava um acordo.

Com isso, McGurk e seu pessoal apanharam seus papéis e abandonaram a sala de conferência, encerrando a reunião abruptamente. Os interlocutores de McGurk vinham do aparato de segurança do Estado iraniano e formavam um grupo que raramente encontrou norte-americanos em pessoa, quanto mais negociou com eles.

Eles não tinham o jeito viajado e a fluência no inglês que caracterizavam os dois funcionários iranianos de primeiro escalão que negociaram o grande acordo nuclear com os Estados Unidos por mais de dois anos.

Por fim, o acordo foi restaurado pelo secretário de Estado norte-americano John Kerry e pelo ministro do Exterior iraniano, Mohammad Javad Zarif, que estudou nos Estados Unidos. Cinco norte-americanos foram libertados e deixaram o Irã no final de semana, em troca de sete iranianos libertados pelos Estados Unidos.

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No entanto, para isso foram precisos 14 meses de negociações turbulentas, pontuadas por intenso drama diplomático e diversos momentos de quase colapso, correndo em paralelo com o ano final das negociações nucleares.

As negociações secretas tinham de arcar com o peso de antigas queixas, entre as quais um golpe de Estado no Irã apoiado pela Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana em 1953 e o apoio dos Estados Unidos ao Iraque na guerra entre este e o Irã nos anos 80.

DISCORDÂNCIA DOMÉSTICA

Os iranianos não eram os únicos a ter de enfrentar divisões em suas fileiras quanto a um possível acordo.

Em Washington, o governo Obama se envolveu em um vigoroso debate sobre trocar ou não prisioneiros iranianos, e quais deles, com a secretária da Justiça Loretta Lynch. Ela objetava a qualquer acordo que equiparasse norte-americanos inocentes aprisionados para ganho político a criminosos iranianos aprisionados ou condenados de acordo com as tradições judiciais do Ocidente.

No fim, as fontes dizem que o presidente Barack Obama decidiu que para salvar os norte-americanos de anos —se não uma vida inteira— em uma cadeia do Irã, ele aceitaria realizar o que definiu como "um gesto que jamais será repetido" e libertar iranianos acusados de, ou condenados por, violar as sanções que ele estava suspendendo como parte do acordo nuclear.

Mesmo assim, surgiu uma disputa de último minuto já na pista do aeroporto —que um funcionário norte-americano definiu como "cena digna do filme 'Argo'"—, quando o Irã se recusou a permitir que a mulher e a mãe de um dos prisioneiros, Jason Rezaian, repórter do "Washington Post", partissem em companhia dele.

Só depois de um telefonema urgente de Kerry ao ministro do Exterior iraniano o avião recebeu permissão de decolar com todos os passageiros.

Críticos republicanos do governo Obama, embora tenham celebrado a libertação dos norte-americanos, questionaram o custo.

"Creio que seja um precedente muito perigoso", disse o senador Ted Cruz, do Texas, um dos principais pré-candidatos republicanos à Presidência, ao programa "Sunday", da rede de notícias Fox News.

"O resultado disso é que todo mau elemento do planeta vai ser aconselhado a capturar um norte-americano. Se você quer tirar terroristas da prisão, capture um norte-americano e o presidente Obama topará um acordo".

CANAL DIPLOMÁTICO SECRETO

Obama autorizou um canal diplomático secreto com o Irã para negociar a libertação enquanto buscava um acordo sobre o programa nuclear de Teerã. McGurk, importante funcionário do Departamento de Estado que acabava de intermediar a renúncia do problemático primeiro-ministro do Iraque, foi apontado em outubro de 2014 para liderar as negociações com o Irã.

Com intermediação da Suíça, que representa os interesses dos Estados Unidos em Teerã, a equipe de McGurk se reuniu pela primeira vez com seus interlocutores iranianos em Genebra, em novembro de 2014, de acordo com um relato oferecido por diversos funcionários do governo norte-americano que pediram que seu anonimato fosse preservado.

A lista de prisioneiros apresentada pelos negociadores continha os nomes de Rezian, encarcerado em julho de 2014; Amir Hekmati, veterano dos fuzileiros navais norte-americanos e morador do Michigan, aprisionado em agosto de 2011 quando estava visitando parentes no Irã; e Saeed Abedini, um pastor protestante do Idaho aprisionado desde 2012.

Os norte-americanos também estavam negociando a libertação de Nosratollah Khosravi, empresário cujo caso não era conhecido publicamente até o final da semana.

Embora as duas partes tenham realizado reuniões mensais ou a intervalo de seis semanas, passaram mais tempo brigando que concordando até que o acordo nuclear fosse finalizado, em julho. Depois disso, o esforço por uma acomodação ganhou ímpeto. Os apelos norte-americanos por tratamento melhor aos prisioneiros foram ao menos em parte atendidos.

A solução surgiu no momento em que os iranianos promoviam rápido avanço para o cumprimento dos termos do acordo nuclear, ao desativar um reator de plutônio, desligar centrífugas e enviar urânio enriquecido para fora do país.

Os funcionários do governo norte-americano afirmam que o momento do acordo não foi combinado, mas derivou da melhora nas relações entre duas partes que se sentiam ansiosas por enfim varrer de seu caminho diversas questões persistentes. Mas não paravam de surgir obstáculos de último minuto que ameaçavam o acordo.

Irã

Em dezembro, o Irã aprisionou Matthew Trevithick, 30, cidadão norte-americano que estava estudando farsi em Teerã. Com um acordo bem próximo, os negociadores norte-americanos informaram aos iranianos que esperavam que ele fosse libertado mas não o incluiriam na discussão porque temiam que isso levasse Teerã a solicitar a libertação de outros iranianos.

Em seguida, na terça-feira, quando o acordo nuclear e o da libertação de prisioneiros se encaminhavam à conclusão, dois barcos-patrulha da Marinha dos Estados Unidos derivaram para dentro das águas territoriais iranianas e dez marinheiros norte-americanos foram detidos, um incidente que um funcionário do governo dos Estados Unidos definiu como "tempestade perfeita".

As autoridades norte-americanas advertiram que, por motivos políticos, o presidente não poderia suspender as sanções contra o Irã se os marinheiros estivessem presos.

Kerry falou repetidamente com Zarif ao telefone, e os marinheiros foram libertados na manhã seguinte, o que os norte-americanos tomaram como sinal de que o Irã estava de fato interessado em concluir os dois acordos. O Departamento de Estado começou a ligar para as famílias dos prisioneiros para informá-las de que as negociações iam bem.

Kevin Lamarque/Reuters
U.S. Secretary of State John Kerry talks with Iranian Foreign Minister Mohammad Javad Zarif after the International Atomic Energy Agency (IAEA) verified that Iran has met all conditions under the nuclear deal, in Vienna January 16, 2016. REUTERS/Kevin Lamarque ORG XMIT: KAL130
Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, conversa com chanceler do Irã, Javad Zarif

Os dois lados decidiram anunciar a troca de prisioneiros em companhia da execução dos termos do tratado nuclear. Trevithick, ainda que tecnicamente não fosse parte do acordo, foi libertado no sábado e deixou imediatamente o Irã em um voo comercial.

Khosravi optou por ficar em Teerã, mas só depois de funcionários da embaixada suíça se certificaram de que era de fato por sua escolha. Os outros três prisioneiros foram levados ao aeroporto e partiram em um avião suíço.

DESACORDOS DE ÚLTIMA HORA

No entanto, mesmo assim surgiram desacordos de última hora. Um deles envolvia a terminologia de documentos pertinentes ao acordo nuclear, o que levou ao adiamento do anúncio. Às 21h do sábado, em Viena, Kerry se reuniu em seu hotel com Zarif e o representante da União Europeia, e o ministro do Exterior francês participou da conversa pelo celular de seu assistente.

Kerry segurou o celular para que os participantes todos oferecessem suas sugestões de ajuste para a terminologia. Por fim, às cerca de 21h30min, todos concordaram quanto à versão definitiva.

Depois do anúncio feito por Zarif e pelo representante da União Europeia, Kerry recebeu informações de Genebra quanto a um percalço na libertação dos três prisioneiros norte-americanos restantes. O Irã não havia permitido que Yeganeh Salehi, mulher de Rezaian, e Mary, a mãe dele, embarcassem no avião.

Kerry ligou para Zarif quando o iraniano estava a caminho do aeroporto. Kerry disse a jornalistas em seu avião que havia conversado com seu colega iraniano e dito: "Olha, Javad, isso é parte do acordo", O norte-americano acrescentou que Zarif encarregou quatro subordinados de resolver o problema.

Àquela altura, as famílias estavam muito ansiosas, e algumas viajaram à Alemanha para receber seus parentes libertados. Obama havia começado a telefonar para informá-los. Ele falou com Sarah Hekmati, irmã de Hekmati, quando ela e o marido, Dr. Ramy Kurdi, estavam no carro a caminho do aeroporto de Detroit.

Mais tarde, ela recebeu um telefonema do irmão.

Suas primeiras palavras para ele foram: "Estou conversando com um homem livre?"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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