Folha de S. Paulo


Análise

Objetivo do acordo, normalização do Irã assusta sauditas

A sobriedade nas declarações e a falta de fanfarras, notáveis dentro do padrão diplomático da administração de Barack Obama, demonstram o quão sérias são as implicações do primeiro passo de implementação do acordo nuclear com o Irã.

Se os dúbios efeitos na indústria do petróleo são os mais evidentes, eles têm de ser inseridos no contexto da disputa entre Arábia Saudita e Irã pela influência no Oriente Médio —e, por extensão, em outras áreas do mundo islâmico.

Kevin Lamarque/Reuters
U.S. Secretary of State John Kerry talks with Iranian Foreign Minister Mohammad Javad Zarif after the International Atomic Energy Agency (IAEA) verified that Iran has met all conditions under the nuclear deal, in Vienna January 16, 2016. REUTERS/Kevin Lamarque ORG XMIT: KAL130
Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, conversa com chanceler do Irã, Javad Zarif

O conhecimento da iminência da ratificação do acordo, provavelmente alimentado por boa inteligência e/ou informações privilegiadas, faz todo o movimento dos sauditas desde o começo do ano se encaixar numa narrativa de ataque preventivo.

Como se sabe, Riad executou um clérigo xiita, levando a uma reação no Irã que culminou com um ataque à sua embaixada. A desculpa para o rompimento de relações diplomáticas, e o estabelecimento de linhas mais claras de interesses por parte das duas potências muçulmanas, estava dado.

Os próprios EUA, ao estabelecerem novas sanções devido ao programa de mísseis de Teerã, quiseram deixar claro que a histórica abertura ao antigo rival não quer dizer liberdade total de ação, além de acenar ao problemático aliado Israel.

Tel Aviv vê como uma ingenuidade o movimento americano de convidar Teerã a ser um ator normal do cenário internacional, de resto um tipo de engajamento que parece lógico, mas enfrentará a realidade com os prepostos iranianos na Síria, Líbano e Faixa de Gaza.

Pela retórica dos aiatolás, Israel tem seus motivos para se preocupar. Se a bomba atômica ficou para outra hora, a tendência é de que o Irã vá incrementar suas encomendas de valiosos sistemas de defesa aérea da Rússia, equalizando aos poucos o balanço militar convencional com o Estado judeu.

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Para os EUA, contudo, o nível baixo da relação com Israel já está na conta. Já em relação a outro país com quem mantêm ligações íntimas no Oriente Médio, a Arábia Saudita, a posição americana é mais dúbia e parece obedecer a estratégias comerciais.

Riad e suas monarquias aliadas no golfo Pérsico, coração da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), vêm deliberadamente derrubando o preço do produto para atacar seus concorrentes, de Washington a Moscou. Vão aos poucos inviabilizando o custoso programa de exploração do xisto nos EUA, além de matar no berço concorrentes menores potenciais, como o pré-sal brasileiro.

Se o petróleo do Irã fará baixar ainda mais o preço, há a incógnita sobre a sustentabilidade da tática saudita, que tem um preço social interno enorme. Não é surpresa, pois, que as grandes empresas ocidentais estejam de olho na reorganização do obsoleto parque petrolífero iraniano, um projeto para anos ou décadas.

Outro ponto sensível do acordo é viabilizar uma ponte de diálogo a mais sobre a Síria, imersa na mais sangrenta guerra civil em curso no mundo, que vê aviões de combate russos, americanos, franceses, ingleses e turcos se estranhando em seus céus todos os dias para atacar alvos diversos no solo.

Lá, o regime de Bashar al-Assad é apoiado por Teerã e por Moscou. A tentativa de uma solução para a instalação de um novo governo, já apoiada pelo Kremlin com condições que não agradam ao Ocidente, pode ser reforçada com um Irã mais próximo de mesas de negociação.

Síria e seus inimigos

Essa normalização do país persa, que pode perder o status de pária como resultado do processo iniciado no sábado (16), assusta os sauditas, que têm uma sociedade mais fechada e uma economia menos diversificada do que a dos iranianos.

Desde a violenta ascensão da teocracia iraniana, em 1979, calcada num discurso antiocidental, o país virou sinônimo de inimigo dos EUA e aliados. Já os monarcas do Golfo, parceiros do Ocidente desde sua fundação em 1932, se contrapunham como amigos confiáveis.

A disputa tem tons religiosos, já que o Irã é o ponto focal do xiismo, ramo ao qual aderem cerca de 15% dos muçulmanos, com presença fortíssima no Iraque e em locais considerados províncias suas por Riad, como o Bahrein ou o conflagrado Iêmen.

Já a monarquia saudita, criada com patrocínio ocidental e interesse em petróleo após o desmantelamento do Império Otomano, clama para si o papel de guia dos sunitas —majoritários na fé, com 85% dos adeptos.

Num paradoxo curioso dada a posição de Riad como aliada do Ocidente, domina o sunismo saudita a vertente wahhabista, que faz uma leitura radical do Corão, inspiradora da Al Qaeda e do Estado Islâmico.

Dos 19 terroristas que atacaram os EUA no 11 de Setembro de 2001, 15 eram sauditas, assim como o chefe deles, Osama bin Laden.

A posição ambígua do reino sempre incomodou os americanos nesse particular, mas nem tudo é tão simples: Bin Laden, por exemplo, era adversário da Casa de Saud e jurou expulsá-la das cidades sagradas que guarda em seu território, Meca e Medina.

A rivalidade tem contornos étnicos também, opondo árabes de origem nômade a persas de longa tradição imperial, com braços de influência Ásia adentro: no Afeganistão, uma das línguas francas é o dari, derivado do farsi iraniano, por exemplo.


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