Folha de S. Paulo


Políticos e especialistas questionam revista por entrevista com 'El Chapo'

Alguns meses atrás, Jann Wenner, fundador da revista "Rolling Stone", recebeu um telefonema do ator Sean Penn.

Penn, disse Wenner em uma entrevista no domingo, queria conversar sobre algo importante. Mas preferia não falar abertamente ao telefone, e com isso os dois começaram a conversar de forma elíptica sobre um potencial projeto.

Reprodução/Rolling Stone
A revista americana
Imagem divulgada pela revista "Rolling Stone" mostra Sean Penn com "El Chapo"

Aquela conversa vaga foi o início do que viria a se tornar um artigo, escrito por Penn, que abalou tanto os Estados Unidos quanto o México ao ser publicado, na noite de sábado (9). Era uma entrevista exclusiva com Joaquín Guzmán Loera, o notório traficante de drogas conhecido como "El Chapo", conduzida enquanto Guzmán estava foragido das autoridades depois de uma audaciosa fuga de uma penitenciária mexicana no ano passado.

O artigo de 10 mil palavras incluía acusações de cooperação entre as forças armadas mexicanas e o cartel de Sinaloa, liderado por Guzmán, bem como a admissão por ele de sua condição de traficante de drogas e seus pensamentos sobre as implicações éticas de seu negócio. Guzmán, cuja fuga da prisão –a segunda– o tornou um dos fugitivos mais procurados do planeta, foi recapturado na sexta-feira (8), antes da publicação do artigo.

Mas depois da publicação, surgiram questões sobre a ética do papel da revista no contato com Guzmán, um criminoso procurado por acusações de tráfico de drogas e homicídio, e por lhe ter conferir o direito de aprovar o texto que viria a ser publicado.

Marco Rubio, pré-candidato republicano à Presidência, falando ao programa "This Week", da rede ABC, no domingo, reconheceu que Penn tinha o "direito constitucional" de se encontrar com Guzmán, mas qualificou a entrevista como "grotesca".

Steve Coll, diretor da escola de pós-graduação em jornalismo da Universidade Columbia, disse que o que o preocupava era o direito de aprovação editorial conferido a Guzmán. Mas, em última análise, ele disse que "conseguir uma entrevista exclusiva com um criminoso procurado é jornalismo, não importa quem seja o repórter".

Wenner disse não acreditar que seja plausível que sua revista se veja envolvida no processo judicial contra Guzmán. "Eles capturaram o homem que procuravam –por que precisariam de nós?", disse. "Não há nada mais que possamos acrescentar."

Um advogado da revista e seu editor executivo, Jason Fine, foram convocados para ajudar no processo de edição. O trabalho no artigo foi concluído cerca de duas semanas atrás, disse Wenner, mas por conta do ciclo de produção da "Rolling Stone", as pessoas envolvidas tiveram de passar por uma espera dolorosa pela nova edição, e nesse meio tempo Guzmán foi capturado.

O trabalho de reportagem e edição do artigo foi realizado de forma sigilosa, em parte para evitar as autoridades.

"Eu estava preocupado por não querer fornecer detalhes que pudessem resultar em sua captura", disse Wenner. "Fomos muito cautelosos, de nossa parte e da parte de Sean, mantendo o silêncio e utilizando uma porção separada e protegida de nosso servidor para trocar e-mails".

PROTEÇÃO

Por volta do final de novembro, enquanto Penn negociava com Guzmán e seus intermediários a inclusão de um vídeo como parte da entrevista, que terminou por ser encaminhado a ele por um serviço de entregas, a revista estava convicta de que teria de resistir à pressão das autoridades dos Estados Unidos e México, que desejariam saber o máximo que pudessem sobre o paradeiro de Guzmán.

"Deixamos claro que não tínhamos informação alguma a oferecer, a não ser aquilo que publicamos", ele disse. "Mas teríamos feito tudo que uma operação tradicional de jornalismo faz, no sentido de proteger fontes."

Wenner disse que Guzmán parece ter se tornado descuidado com relação às pessoas que contatava, durante sua fuga, e que provavelmente teria sido localizado com ou sem o artigo de Penn.

Há um longo histórico de entrevistas de jornalistas com pessoas foragidas das autoridades ou consideradas repreensíveis por outros motivos.

Osama bin Laden foi entrevistado no final dos anos 90 depois de decretar uma jihad contra os Estados Unidos (mas antes dos ataques do 11 de setembro). Em 2013, o antigo astro do basquete Dennis Rodman viajou à Coreia do Norte para um encontro com o repressivo ditador do país, Kim Jong-un, registrado em vídeo pela companhia de mídia Vice.

Quanto a conferir a Guzmán aprovação final sobre o artigo, Wenner disse "não acreditar que isso tenha sido importante". "No passado, autorizamos outras pessoas a aprovar suas declarações usadas em entrevistas."

Guzmán, ele disse, não fala inglês e não parecia muito interessado em editar o trabalho de Penn. "Nesse caso, foi algo de pequeno a fazer em troca daquilo que conseguimos", disse Wenner.

CONTROLE DO CONTEÚDO

Ainda assim, os críticos da "Rolling Stone" não se deixam aplacar. Andrew Seaman, presidente do comitê de ética da Sociedade de Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos, escreveu em post de blog que "permitir a qualquer fonte controle sobre o conteúdo do artigo é imperdoável".

A prática de conceder direito de aprovação, disse ele, "desacredita toda a história –quer a pessoa que serve de tema solicite mudanças, quer não. O autor, no caso um ator e ativista, pode escrever a história de um ponto de vista mais favorável e omitir fatos menos lisonjeiros sobre a pessoa que serve de tema, em um esforço para evitar rejeição".

Coll concorda em que a oferta de direito de aprovação prévia é um erro. Mas, disse ele, "é difícil julgar o que a 'Rolling Stone' estava pensando, porque aparentemente o poder de veto não foi exercido, livrando a revista de qualquer dilema".

Para a revista, disse Wenner, a entrevista com "El Chapo" representou uma virada bem vinda. Acredita-se que tenha sido a primeira entrevista concedida por Guzmán em décadas, e foi submetida à verificação de fatos e a entrevistas complementares com testemunhas.

No ano passado, a "Rolling Stone" foi pesadamente criticada por um artigo desacreditado segundo o qual um estupro coletivo brutal teria acontecido na Universidade da Virgínia. Na semana que se seguiu à publicação, a polícia e pessoas familiarizadas com a situação questionaram a veracidade do artigo.

Um relatório encomendado pela "Rolling Stone" depois da controvérsia quanto ao artigo, do qual Coll foi um dos coautores, concluiu que o artigo sobre o estupro havia resultado de falhas em todos os estágios do processo, do trabalho de reportagem à edição. A revista retirou o artigo e se tornou alvo de processos judiciais.

Sobre o artigo de Penn, Wenner disse que "não é uma volta por cima, mas uma reafirmação de o quanto somos bons, o quanto somos fortes".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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