Folha de S. Paulo


Reação à violência policial sacode Chicago, berço político de Obama

Patrick Vance, 25, ainda sente a bala alojada abaixo do peito. Alvo de oito disparos em novembro, quando chegava de carro a uma loja de conveniência na periferia de Chicago, ele foi atingido duas vezes na lateral das costas.

Não morreu por causa da gordura acumulada na região, segundo o médico que o operou, e pela graça de Deus, acredita.

Hoje ativista em uma das regiões mais inflamadas dos Estados Unidos pelo conflito entre a população negra e a polícia, pelo uso indiscriminado de armas e pela pobreza crescente, Vance cogita ter sido alvo de uma tentativa de "queima de arquivo". Ele fazia parte de uma gangue até ser preso por roubo, aos 16.

Tannen Maury - 24 dez. 2015/Efe
Manifestantes se deitam no chão de avenida de Chigago em protesto contra prefeito, em dezembro
Manifestantes se deitam no chão de avenida de Chigago em protesto contra prefeito, em dezembro

Ameena-Fort Matthews (não revela a idade) também superou a criminalidade. Filha de Jeff Fort, condenado por terrorismo, ela viveu dos 16 aos 24 na rua. Traficava drogas e roubava quando foi mandada para a cadeia.

Ao sair, casou-se com um xeque e agora combate injustiças como a falta de oportunidades e o encarceramento em massa. "A pior violência é a pobreza", afirma. "Imagine 10 mil vacas em um pasto justo para 15. É assim que nossos irmãos e irmãs vivem em suas casas, nas cadeias e nas escolas."

Vance e Matthews são dois das centenas de ativistas que têm ido às ruas da cidade todas as semanas desde novembro, após a revelação de um vídeo mostrando um policial, em 2014, disparar 16 vezes para matar um adolescente negro, Laquan McDonald, 17 —que, ao contrário do relatado pelas autoridades, não o ameaçava, mas tentava fugir.

O Departamento de Justiça federal abriu uma investigação contra a polícia local. Desde então, ao menos outros dois negros foram mortos por oficiais. O chefe da polícia foi demitido.

Movimentos negros se articulam. "Nossa principal pauta é, basicamente, que parem de nos matar", disse Jason Tompkins, 35, um dos coordenadores do grupo Black Lives Matter (vidas negras importam) em Chicago.

Thais Bilenky/Folhapress
Jason Tompkins, 35, membro do Movimento Black Lives Matter em Chicago
Jason Tompkins, 35, membro do Movimento Black Lives Matter em Chicago

Com concentração no cinturão negro da cidade, 468 pessoas foram assassinadas em 2015, maior total em três anos, e 2.939 foram vítimas de tiros, segundo a polícia.

Terceira mais populosa do país, a região metropolitana de Chicago é a mais segregada, segundo o centro de estudos Brookings. A população branca, que responde por 32% do total, registra aumento da renda per capita desde 2000. Negros (33%) e hispânicos (29%) tiveram a renda diminuída a níveis de 1990.

POBREZA E RACISMO

"No fundo, a causa da pobreza é o racismo", observou o padre Michael Pfleger, 66, em entrevista à Folha e à revista "The New Yorker".

O religioso acredita que, ao escancarar a discriminação da polícia contra o jovem assassinado, a divulgação do vídeo foi o estopim para Chicago entrar em ebulição. "Havia uma mistura de diversos ingredientes, e a água estava sendo aquecida na panela. As pessoas disseram 'basta'."

Branco numa região habitada por negros, o religioso milita pelo desarmamento nos 40 anos à frente da igreja Santa Sabina.

Entre protestos e missas, ele promove às segundas, no ginásio da paróquia, um jogo de basquete que une criminosos e ativistas.

O jogador profissional Joakim Noah, do Chicago Bulls, assistiu à partida no último dia 4 "como forma de apoio às comunidades", justificou. Vance e Matthews, mesmo sendo muçulmana, também frequentam o campeonato.

O time de ativistas ataca os mesmos problemas que os movimentos negros maiores, porém com outras táticas –apostam na pacificação de suas comunidades e no diálogo com o poder público.

Grupos de abrangência nacional, porém, criticam a abordagem "reformista".

"Não defendemos políticas de controle de venda de armas que criminalizam pessoas vulneráveis. Não defendemos a substituição de armas por equipamento não letal", afirma Jason Tompkins.

"A polícia que nos mata recebe US$ 4 milhões por dia. Temos uma plataforma de justiça econômica, com financiamento de nossas escolas e serviços sociais e criação de trabalhos", pontua Janaé Bonsu, 24, líder do Black Youth Project 100.

O padre diz se preocupar com a falta de objetivos claros. "Temos a oportunidade de fazer mudanças reais, mas temo perdê-la."

O espaço urbano estampa os conflitos na cidade do primeiro presidente negro dos EUA. No bairro de Hyde Park, a um só tempo, estão localizadas a casa de Barack Obama e a sede principal da Universidade de Chicago, famoso centro do pensamento liberal, além de ser a região onde moram diversos ativistas negros. E Bronzeville, próximo a Hyde Park, é o mais novo alvo da gentrificação.


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