Folha de S. Paulo


Acordo de Paris começou a tomar forma com fracasso de Copenhague

Negociadores de 195 países levaram quase duas semanas para finalmente aprovar o histórico acordo climático no fim de semana, depois de várias sessões que vararam a noite, movidas a café expresso, e discussões longas e intensas sobre o significado de uma única palavra, como "irá".

Mas a história de como o acordo tomou forma começou muito antes disso –em dezembro de 2009, com o fracasso da última cúpula desse tipo, em Copenhague, Dinamarca.

Vista em retrospectiva, a conferência de Copenhague serviria de estudo de caso sobre como não fechar um acordo. Os anfitriões do evento tinham adotado um tom severo, com barricadas de concreto, arame farpado em rolos e jaulas de aço para prender manifestantes que se excedessem.

Connie Hedegaard, a ministra dinamarquesa do Clima e da Energia, foi intransigente, "pondo pressão sobre todos os governos para fazer com que o preço político de ser um obstáculo fosse tão alto que ninguém quisesse pagá-lo", ela disse na época.

Nas últimas e tensas horas da conferência, líderes mundiais de um punhado de países grandes tomaram as rédeas das negociações, enfurecendo os países menores. Pouca coisa emergiu das discussões exceto recriminações e sugestões de que, em última análise, encontros de cúpula como aquela seriam inúteis.

"Depois de Copenhague, muitos líderes mundiais passaram a acreditar que o processo das Nações Unidas não funcionaria mais para combater as mudanças climáticas", disse em entrevista o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon. "Foi profundamente decepcionante. Foi doloroso."

MUDANÇAS

Então o que mudou de Copenhague a Paris? Em poucas palavras, três coisas: houve uma mudança fundamental na geopolítica das mudanças climáticas; uma mudança da percepção do aquecimento global, que de um aviso distante passou a ser visto como ameaça imediata; e a arte da diplomacia francesa exercida durante o evento e nos meses que o precederam, para suavizar as arestas duras dos negociadores e reduzir as chances de que grandes pontos de discórdia pudessem novamente inviabilizar um acordo. Os franceses se certificaram, em especial, que cada país sentisse que sua voz seria ouvida, independentemente de suas dimensões ou riqueza.

"Depois da decepção incrível de Copenhague, o fato de esses 195 países terem podido fechar um pacto mais ambicioso do que qualquer um poderia ter imaginado foi uma surpresa maravilhosa", comentou Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial e estreitamente envolvido nas negociações. "Isso nunca acontece."

As discussões em Copenhague foram prejudicadas antes mesmo de começar, pelo fato de os maiores países enxergarem o presidente Barack Obama com profundo ceticismo. A reputação dos Estados Unidos na questão das mudanças climáticas desabou devido à decisão do país, sob o governo de George W. Bush, de não participar do primeiro tratado climático mundial, o Protocolo de Kyoto.

Historicamente falando, os EUA tinham exigido ação de outros países ao mesmo tempo em que faziam pouco em casa, apesar de o país ter sido o maior emitente de gases estufa do mundo nas décadas recentes. E os EUA estavam em um impasse com a China, o outro maior poluidor mundial, com cada país esperando que o outro assumisse compromissos antes de ele próprio se comprometer com ações.

Ainda em seu primeiro mandato, e tendo acabado de receber o Nobel da Paz de 2009, Obama prometeu a outros líderes mundiais em Copenhague que isso tudo mudaria sob seu governo. Ele assegurou que o Congresso americano estava prestes a aprovar uma lei nova e abrangente sobre as mudanças climáticas, apresentada pelo senador John Kerry, do Massachusetts.

Mas as promessas lhe valeram pouca credibilidade. Obama foi tratado com pouco caso pelo premiê da China, Wen Jiabao, que lhe enviou representantes de níveis progressivamente mais baixos para as negociações finais. Nas últimas e tensas horas da conferência, Obama invadiu uma reunião com Wen e outros líderes que estavam trabalhando a noite inteira em seus laptops para tentar redigir um acordo.

SEM APOIO

Alguns meses antes do início das negociações, Hedegaard tinha assinalado que um fracasso não era uma opção para o acordo. "A China e outros países emergentes precisam aceitar o acordo, mesmo que não seja justo", ela disse.

Mas não bastaria força de vontade para impor um acordo, e o pacto negociado nas últimas horas nos bastidores não obteve o apoio consensual necessário para um acordo legalmente vinculante, tendo sua aprovação sido obstruída por um punhado de países, incluindo Venezuela, Bolívia e Cuba. "Os ricos estão destruindo o planeta", disse durante as discussões o presidente socialista da Venezuela, Hugo Chávez. "Talvez eles pensem que vão poder embarcar para outro depois de destruir este."

Pouco depois de Obama voltar para casa, a lei proposta por Kerry sobre as mudanças climáticas foi reprovada no Congresso. E durante o resto de seu primeiro mandato, Obama deixou a questão das mudanças climáticas no segundo plano.

Isso mudou depois de sua reeleição à Presidência. Mesmo seus assessores se surpreenderam quando, no início de 2013, Obama lhes disse que pretendia colocar as mudanças climáticas no centro da pauta de seu segundo mandato. Em seu primeiro discurso do Estado da União depois de ser reeleito, ele ameaçou os republicanos com relação às mudanças climáticas, dizendo: "Se o Congresso não agir, eu o farei".

Isso enfureceu os republicanos e levou Obama a ser criticado por abuso do poder executivo. No ano seguinte, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) lançou regulamentos novos para reduzir os gases estufa emitidos por usinas elétricas movidas a carvão. Essas novas normas –que podem levar ao fechamento de centenas de usinas e ao congelamento da construção de usinas novas– representam a ação mais importante adotada por qualquer presidente americano em relação às mudanças climáticas.

Os republicanos declararam que Obama estava travando "uma guerra ao carvão". Mas os atos do presidente também tiveram o efeito de mudar fundamentalmente o modo como os Estados Unidos eram vistos nas discussões climáticas internacionais.

"Obama mudou o jogo", comentou a enviada francesa para as mudanças climáticas, Laurence Tubiana.

CHINA

As posições da China em relação às mudanças climáticas também mudaram. A enorme multiplicação de usinas elétricas movidas a carvão estava alimentando o crescimento econômico acelerado do país, mas também sufocando suas cidades com poluição.

Com a indignação pública crescente diante dos níveis recordes de smog tóxico, as autoridades chinesas começaram a tomar medidas para limitar o consumo de carvão no país.

John Kerry, que já tinha se tornado secretário de Estado, acompanhava atentamente essa mudança de postura da China. Ele enxergou nisso uma oportunidade de intermediar um acordo e tentar abrir caminho para um acordo mais amplo em Paris.

Ao longo de 2014, Kerry promoveu em Pequim uma série de encontros sobre as mudanças climáticas. Em outubro de 2014 ele convidou o representante principal da China para o meio ambiente, Yang Jiechi, a um almoço particular no restaurante Legal Seafoods, com vista para o porto de Boston. Eles conversaram por três horas sobre as mudanças que já tinham influído sobre a política de seus dois países em relação à poluição e discutiram a possibilidade de converter tudo isso em uma nova política ambiental no palco mundial.

No mês seguinte, Obama foi a Pequim, onde ele e o presidente Xi Jinping anunciaram que iriam avançar conjuntamente com planos para reduzir a poluição por gases estufa de seus dois países.

Esse anúncio rompeu o impasse que mantinha as negociações sobre as mudanças climáticas paralisadas havia quase 20 anos.

Todos esses momentos conduziram a Paris, onde elementos da diplomacia francesa ajudaram a fazer com que o acordo fosse concretizado.

LEGADO

Como Obama, o presidente francês, François Hollande, queria criar um legado baseado nas mudanças climáticas. Ele queria um acordo histórico que levasse o nome da capital francesa. Em vista da história problemática das negociações climáticas, considerava-se que o país anfitrião das conferências exerce um papel crucial no resultado delas. Liderados por Hollande, pelo chanceler Laurent Fabius e pela enviada climática Laurence Tubiana, as autoridades francesas quiseram assegurar-se de evitar os erros cometidos pela Dinamarca.

No ano que precedeu a conferência, Tubiana percorreu o mundo e se reuniu com suas contrapartes muito antes de elas chegarem para as negociações. Fabius, o diplomático mediador público das negociações, ajudou a resolver as dificuldades nos bastidores.

Os franceses também levaram em conta que os ânimos se acirram e o processo decisório se deteriora quando as pessoas estão cansadas e com fome. Tendo divulgado um esboço do acordo na noite de quinta-feira, precipitando uma sessão de negociação que varou a noite inteira, os franceses disseram que não divulgariam outro antes da manhã do sábado, com isso garantindo que os negociadores tivessem a noite de sexta-feira para recuperar o sono atrasado. E, quando estavam prestes a divulgar o texto do sábado, que acabaria revelando ser o final, eles de repente ordenaram uma pausa para o almoço.

"Foi uma constelação muito específica de acontecimentos", disse Kim, o presidente do Banco Mundial. "O acordo não teria acontecido se os franceses não tivessem passado um ano antes trabalhando sobre ele. Não teria acontecido se Obama não tivesse passado tempo construindo relações com Xi Jinping. Não teria acontecido sem o anúncio da China e dos EUA. Mas representa a maior transformação que já vimos acontecer nesta crise global."

Tradução de CLARA ALLAIN

ACORDO DE PARIS SOBRE CLIMA


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