Folha de S. Paulo


Reação a ataques ameaça livre movimento de pessoas pela Europa

Andrew Yates/AFP
Agente de segurança do aeroporto de Manchester (Reino Unido) observa monitor de scanner corporal
Agente de segurança do aeroporto de Manchester (Reino Unido) observa monitor de scanner corporal

Como se o sistema europeu de viagem sem passaporte já não estivesse sob pressão suficiente após um verão de migração caótica, os ataques da última semana em Paris reforçaram as dúvidas sobre por quanto tempo essa liberdade de movimento —uma das mais estimadas conquistas da União Europeia— poderá sobreviver.

Os ataques de 13 de novembro em Paris foram cometidos quase inteiramente por portadores de passaportes europeus, que entraram e saíram da Síria sem serem identificados ou barrados. Além disso, a descoberta de um passaporte sírio aparentemente portado por um dos atacantes de Paris renovou os medos de que terroristas tenham se infiltrado na onda de migrantes.

AFP
This combination of photos made in Paris on November 18, 2015 shows the suspected mastermind of the November 13, 2015 Paris attacks, 28-year-old Belgian IS group leading militant Abdelhamid Abaaoud (C), French Bilal Hadfi (L) one of the suicide bombers who blew himself outside the Stade de France stadium, Samy Amimour (R), one of the suicide bombers who attacked a Paris concert hall, suspect at large French Salah Abdeslam (2nd R), and an unidentified man (2nd L) suspected of being involved in the attacks. AFP PHOTO -- RESTRICTED TO EDITORIAL USE, DISTRIBUTED AS A SERVICE TO CLIENTS FROM ALTERNATIVE SOURCES, AFP IS NOT RESPONSIBLE FOR ANY DIGITAL ALTERATIONS TO THE PICTURE'S EDITORIAL CONTENT, NO MARKETING NO ADVERTISING CAMPAIGNS -- ORG XMIT: -01
Suspeitos e autores identificados dos atentados em Paris. Da esq.: Samy Amimour, Ahmad al-Mohammad, Abdelhamid Abaooud, Salah Abdeslam e Bilal Hadfi

Com o foco agora no reforço da segurança, os ministros europeus do Interior e da Justiça fizeram uma reunião de emergência na sexta-feira (20) e prometeram complementar as propostas francesas de controle mais estrito nas fronteiras até o final do ano.

Pela primeira vez, os ministros finalmente concordaram em estabelecer um sistema para compartilhar dados dos passaportes de viajantes aéreos dentro da área de fronteiras livres definida pelo Tratado de Schengen.

Dado o duplo caos de fluxos migratórios e terroristas que cruzam fronteiras, muitos países - incluindo a França, a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Holanda, a Hungria, a Eslovênia, a República Tcheca, a Eslováquia e a Suécia - estabeleceram controles de fronteira temporários.

A preocupação é de que eles tornem permanentes esses controles, destruindo o acordo de Schengen com uma medida prevista nele.

Na noite de quinta-feira (19), para aumentar a confusão, a maior parte dos países ao longo do corredor europeu de migrantes fecharam abruptamente suas fronteiras para aqueles que não vinham de países devastados pela guerra, como Síria, Afeganistão e Iraque, deixando milhares presos nos pontos de fronteira dos Bálcãs.

Manuel Valls, o primeiro-ministro francês, disse: "se a Europa não fizer frente às suas responsabilidades, todo o sistema de Schengen estará sob questão".

O acordo de fronteiras abertas, estabelecido há 20 anos, cobre 22 países da União Europeia e outras quatro nações. Mas o sistema só pode funcionar se as fronteiras externas estiverem protegidas, e parece óbvio que a Europa falhou nisso.

Arnaud Danjean, membro do Parlamento europeu e ex-diplomata francês, disse sem medir palavras: "se, até o final do ano, não forem implementadas as medidas necessárias para reforçar os controles externos de fronteiras e para verificar os passaportes dos cidadãos da área Schengen, creio que o acordo esteja morto."

Caso contrário, ele disse, "vários países virão em janeiro dizer que precisamos de outro sistema e, até termos algum, adotaremos controles permanentes de fronteira".

A proposta francesa de controles mais estritos na fronteira foi feita pela primeira vez em janeiro, depois que radicais islâmicos atacaram o jornal satírico Charlie Hebdo e um supermercado kosher. Ela parou no Parlamento Europeu devido a inação e por preocupações com a privacidade dos dados, levantadas em particular pela Alemanha e pelos novos membros do centro da Europa e do Leste Europeu, que até agora têm sido poupados pelo terror.

Na sexta-feira, porém, os ministros deram seu apoio às medidas exigidas pela França nesta semana, que incluem o reforço das fronteiras externas com a extensão da verificação de passaportes a mais pessoas que geralmente podem entrar e se movimentar livremente dentro da área Schengen, disse Bernard Cazeneuve, ministro do interior francês.

Mapa dos locais do atentados em Paris

Cazeneuve expressou fúria com o fato de que a França precisou de informações de um país não-europeu, provavelmente Marrocos, para saber que o líder dos ataques em Paris, Abdelhamid Abaaoud, havia voltado à Europa sem ser detectado.

Pela proposta francesa, se um portador de passaporte de Schengen viajar a um terceiro país, seja a Turquia, a Síria, o Brasil ou os Estados Unidos, na volta o passaporte não deveria apenas ser examinado como também verificado em bancos de dados criminais e de segurança.

Os ministros também concordaram em estabelecer um banco único de registros de armas na Europa. Danjean disse esperar que as leis de controle de armas possam eventualmente ser unificadas na União Europeia, ressaltando que as leis belgas são muito menos restritivas do que as francesas.

Embora as dificuldades com o tratado de Schengen sejam em grande parte técnicas e administrativas, as questões políticas envolvidas se tornaram virulentas, alimentando os partidos de extrema-direita da Europa, especialmente a Frente Nacional, da França, e os Democratas da Suécia.

Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, disse que "a ausência de fronteiras nacionais é uma loucura criminosa". Usando um tema familiar, mas incômodo, ela disse: "as elites francesas se entregaram a esse mito surreal de país sem fronteiras. Abram seus olhos, já!"

Os eurocéticos e a extrema direita, "os que vêm tentando se beneficiar da situação, estão tentando redefinir todo o debate de Schengen de maneira que faz o tratado parecer o culpado", disse Jan Techau, diretor do instituto de pesquisa Carnegie Europe, em Bruxelas.

Segundo ele, o Estado Islâmico "usou um momento muito vulnerável para seus ataques, sabendo muito bem que a crise dos refugiados funciona como um multiplicador da força dos seus ataques". Embora considere isso injusto, Techau disse: "é muito difícil separá-los agora".

"A vítima é a Europa", disse Alain Frachon, colunista do "Le Monde". Os ataques de Paris chegarem junto com a crise dos migrantes "são mais uma bala no cadáver de Schengen", segundo ele. "Mas, é claro, Schengen nunca foi realmente aplicado", escreveu. "A liberdade de viagem interna exigiria controles de fronteira europeus", feitos por uma agência chamada Frontex, "mas ninguém quis colocar dinheiro na Frontex".

Em geral, disse Frachon, "o primeiro reflexo de qualquer agência policial, de fronteira ou de alfândega é manter o controle nacional". Para defender eficientemente as fronteiras externas da Europa, ele disse, é necessário ter uma agência supranacional europeia que funcione. "Mas isso é o exato oposto do que a opinião pública está exigindo agora, e isso é uma terrível contradição".

Para a União europeia, este é um momento definitivo, escreveu François d'Alançon, analista do jornal "La Croix". "Não se trata apenas do Estado Islâmico, mas da crise de refugiados, do euro, da liberdade de movimentação e da integração de muçulmanos em toda a Europa".

"Temos todas essas pessoas dizendo que deveríamos fechar as fronteiras nacionais, mas sabemos que todas as respostas são de fato europeias. Para a troca de informações, para os refugiados, é preciso mais Europa, com políticas unificadas de asilo e de segurança."

Para muitas pessoas, disse d'Alançon, "todos pensávamos que a ideia europeia, que o projeto europeu, era o único ideal que restava". Agora, diz ele, "tudo se foi; tudo virou uma grande névoa."

TRADUÇÃO DE MARCELO SOARES


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