Folha de S. Paulo


Ativistas em Angola relatam piora de abuso e perseguição por governo

Às vésperas do julgamento dos 17 jovens acusados de "atos preparatórios para prática de rebelião" e "atentado contra o presidente de Angola", outros ativistas denunciam intimidação pelas forças de segurança do governo de José Eduardo dos Santos, no poder há 36 anos.

"Já recebi cinco mensagens na minha caixa falando que 'o próximo serás tu'. Mas isso não é segredo para ninguém, as ameaças vêm todos os dias", diz o rapper Leonardo Kossengue.

Eliza Capai/Agência Pública
Os ativistas Leonardo Kossengue, Magno Domingos e Ermo Rebelo (esq. para dir.), do Central Angola
Os ativistas Leonardo Kossengue, Magno Domingos e Ermo Rebelo (esq. para dir.), do Central Angola

Os jovens foram presos por participar de um grupo de estudos do livro "Da Ditadura à Democracia", do pacifista americano Gene Sharp.

O caso ganhou repercussão internacional após um deles, o rapper Luaty Beirão, ficar em greve de fome durante 36 dias. Em setembro, a Pública esteve em Luanda e conversou com familiares e colegas dos acusados.

Uma das maiores fontes de mobilização da juventude angolana é a Central Angola, canal digital de jornalismo cidadão ao qual muitos dos presos são ligados. Nascida em 2011, a Central agrega fotos, vídeos e relatos de denúncias sobre problema sociais no Facebook e YouTube.

"A Central congrega várias mentalidades num só objetivo, que é o despertar, trazer aquilo que está errado", explica o ativista Magno Domingos. "Não existe televisão que fala da realidade do que se passa em Angola, então decidimos ter uma alternativa", completa Kossengue.

Pelo trabalho, muitos dos "centraleiros" são vigiados e ameaçados. No começo de 2014, o grupo descobriu que havia um agente do serviço secreto infiltrado desde 2012.

Reprodução/Facebook
O angolano Luaty Beirão, detido pelo governo de Angola em junho. Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O rapper angolano Luaty Beirão, uma das 15 pessoas que foram detidas pelo governo do país em junho

Foi um choque para todos, o que os levou a aumentar as medidas de proteção.

"Eu não ando nunca sozinho", explica Magno. "Carrego sempre um aparelho que me conecta com os outros. Não fico até tarde em certos lugares. Tô atento a todo momento. São traumas."

Um mês depois da entrevista, os temores de Magno se confirmaram. Ele ficou 22 dias preso sob acusação de "falsa identidade" por portar uma permissão de jornalista.

Laurinda Gouveia, 26, é uma das pouquíssimas mulheres a participar das manifestações. No final do ano passado, ela foi espancada durante duas horas por agentes do governo.

"Começaram a bater-me, ainda algemada, com porrete, com pau de vassoura, a dar-me mesmo na perna, em toda parte", lembrou ela durante entrevista em Luanda.

"'Não se mete nisso, você é mulher, se preocupe em casar, ter filhos... Depois dessa surra tu já não vais fazer filhos!', diziam os policiais."

O Comissário-Chefe da polícia de Luanda, Antonio Maria Sita, nega que tenha havido espancamento. Laurinda apresentou queixa-crime contra o comandante e espera uma posição da Justiça.

Eliza Capai/Agência Pública
A ativista Laurinda Gouveia (de vestido listrado) com as famílias de 15 presos políticos
A ativista Laurinda Gouveia (de vestido listrado) com as famílias de 15 presos políticos

Cinco dias depois de ter concedido a entrevista à Pública, ela foi intimada a depor, proibida de falar sobre o seu interrogatório e oficialmente se tornou acusada de golpe de Estado com os 15 detidos. "Meu olhar para esses senhores não é como antigamente: não tinha provado de tanta maldade", diz.

A reportagem da Pública também sentiu na pele a perseguição, após uma entrevista com familiares dos presos. Na saída, um agente vestido de vermelho tirou fotos e seguiu o carro da reportagem.

Pouco depois, durante a celebração do aniversário do presidente, dia em que havia manifestação, dois agentes disfarçados roubaram as mochilas das repórteres, que foram atiradas ao chão. O equipamento só foi liberado cinco dias depois, a pedido da embaixada brasileira.

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TÁTICAS TOTALITÁRIAS

Para Paula Cristina Roque, pesquisadora da Universidade de Oxford, Reino Unido, as estratégias de controle fazem de Angola um "Estado totalitário".

"Se uma pessoa fala mal do governo, eles vão buscar saber quem são os familiares, onde essa pessoa trabalha, como essa pessoa sobrevive, como é a vida dela, depois infiltram e criam problemas", diz.

"Os familiares, se trabalham no serviço público, perdem o emprego, se têm alguma necessidade de ir a um hospital, não recebem tratamento. Mas há casos em que não são tão benevolentes e as pessoas levam espancamentos."

Para ela, a sensação de medo é vista pelo regime como essencial para manter o status quo. Angola é o segundo maior exportador de petróleo da África, mas continua sendo um dos mais desiguais do mundo, com grande parte da população vivendo com menos de US$ 2 por dia.

"Não é preciso matar para criar medo. Há muitas outras técnicas, e eles sabem essas técnicas todas", avalia Paula Cristina.

OUTRO LADO

Para o Ministério Público angolano, os 17 jovens incidiram em "crime de atos preparatórios para a prática de rebelião" e "atentado contra o Presidente da República ou outros membros de Órgãos de Soberania".

Alain Jocard - 3.jul.2015/AFP
O presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, no palácio presidencial, em Luanda
O presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, no palácio presidencial, em Luanda

A acusação argumenta que ao final do curso sobre o livro "Da Ditadura à Democracia" o grupo partiria para a ação concreta, promovendo greves, manifestações e bloqueios de ruas em Luanda.

"Essa obra inspirou as chamadas revoluções nos países da Europa do leste, países nórdicos, países africanos como Tunísia, Burkina Faso, Egito, Líbia, alguns países da América Latina que derrubaram os respectivos governos e cujas consequências de tão nefastas deixaram os países atingidos completamente na desgraça", diz o texto.

Este texto publicado pela Folha é uma versão editada com exclusividade pela agência Pública para o jornal de sua série de reportagens sobre Angola. O material completo vai ao ar a partir desta segunda (16) no site *http://apublica.org.


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