Folha de S. Paulo


Deterioração da saúde bucal das crianças evidencia crise na Grécia

Foi a primeira vez em semanas que Anthoula Papazoi cozinhava carne. Doado por uma amiga, o pedaço de carne tinha passado a manhã inteira cozinhando em fogo baixo. Mas a panela tinha sido esquecida enquanto Papazoi se preocupava com o dente de sua filha Nikoleta, de 13 anos.

Com cabelos pretos compridos e unhas pintadas de azul forte, a adolescente saiu do quarto trajando shorts e camiseta regata. Tinha passado a maior parte do dia dormindo e estava atrasada para o dentista, onde passaria por um tratamento de canal em um dente da frente.

Cathal McNaughton - 10.jul.2015/Reuters
Anthoula Papazoi (L) reacts as she sits beside her son Anastasis (2nd L), 5, and daughters Elli (2nd R), 16, and Nikoleta, 13, at their home in the city of Ioannina, Greece July 10, 2015. Picture taken July 10, 2015. To match Special Report GREECE-TEETH/ REUTERS/Cathal McNaughton ORG XMIT: PXP401
Anthoula Papazoi (à esq.) senta-se ao lado de seus filhos em sua casa em Ioannina, na Grécia

"A gente tem analgésicos?", ela perguntou, procurando no armário da cozinha. "Estou ficando louca de dor."

"Não. Vá se arrumar para ir ao dentista", respondeu sua mãe.

"Tem leite?" Nikoleta quis saber.

Ela puxou a fita adesiva que prendia a porta da geladeira e tirou uma caixinha de leite de dentro. Em uma caneca branca, misturou o leite com achocolatado e cinco colheres de açúcar. Depois se deixou cair na cadeira.

"Levante-se e vá", mandou sua mãe.

Um dos lugares em que as feridas deixadas pela recessão econômica da Grécia estão mais evidentes é nas bocas das crianças do país. Segundo a maioria dos indicadores de saúde dentária, a Grécia é um dos lugares mais doentes da Europa. De acordo com a agência estatística da Europa, Eurostat, em 2013, 10,6% dos gregos de 16 anos ou mais teve problemas odontológicos que ficaram sem atendimento –a média da União Europeia foi de 7,9%.

Os problemas dentários são especialmente agudos entre as crianças, segundo pesquisa recente da Federação Odontológica Helênica, um organismo supervisor. E a crise econômica agravou a situação. Entre 2004 e 2014, 60% dos problemas dentários em adolescentes de 15 anos passaram pelo menos um ano sem ser tratados, contra 44% na década anterior. De acordo com a pesquisa, quase todas (86,8%) as crianças de 5 anos entrevistadas sofreram problemas dentários que ficaram sem tratamento.

"Lamentavelmente, os dentes são vistos como um luxo", comentou a dentista Niki Diamanti, que trabalha no hospital Hatzikosta, um dos dois hospitais públicos em Ioannina, cidade do noroeste do país. "Cinco anos atrás, as pessoas iam ao dentista uma vez por ano; hoje elas vão a cada cinco anos."

O que chama a atenção no caso da Grécia é que, segundo especialistas, os problemas dentários não são causados principalmente por mudanças na higiene dental diária. Na realidade, as crianças estão apresentando doenças dentárias ligadas à depressão econômica, que já dura seis anos.

Primeiro, problemas de dinheiro reduziram as consultas com dentistas. A renda disponível dos gregos encolheu 30% desde 2009. Mais de 1,2 milhão de gregos –uma em cada quatro pessoas em idade economicamente ativa– estão desempregados. Segundo a Unicef, a agência das Nações Unidas para a infância, 40% das crianças gregas vivem na pobreza –uma parcela maior que em países como Chile, Turquia ou México.

E o sistema de assistência médica gratuita ou de baixo custo usado há décadas por milhões de gregos encolheu, em grande medida devido aos cortes nos gastos públicos impostos em troca da assistência financeira de US$ 354 bilhões (R$ 1,35 trilhão, valores atuais) recebida pela Grécia desde 2010. Os gastos per capita com saúde caíram 9% ao ano entre 2009 e 2012.

Resultado: mais de 8% dos gregos deixaram de ir ao dentista em 2013 porque não podiam pagar, uma porcentagem bem superior à média europeia de 5,1%, segundo a Eurostat.

Para os dentistas, a crise financeira também levou ao aumento no consumo de alimentos baratos, com alto teor de açúcar. Depois de cair por dois anos, as vendas de lanches doces em supermercados voltaram a subir em 2013, segundo o grupo Euromonitor, que pesquisa bens de consumo.

Alkis Konstantinidis - 27.out.2015/Reuters
Dentist Christos Naoumis treats a patient at the Doctors of the World polyclinic in central Athens, Greece, October 27, 2015. Picture taken October 27, 2015. To match Special Report GREECE-TEETH/ REUTERS/Alkis Konstantinidis ORG XMIT: PXP402
O dentista Christos Naoumis trata paciente em clínica dos Médicos do Mundo em Atenas

Os dentes cariados dos gregos podem estar acumulando problemas para o futuro. Estudos feitos em todo o mundo já identificaram ligações entre saúde oral fraca e males crônicos como a doença cardiovascular, maior causa de mortes do mundo. A periodontite grave está vinculada ao diabetes e à doença arterial coronariana, segundo vários estudos médicos. Cientistas ainda discutem se os problemas dentários causam outros problemas de saúde ou se apenas estão ligados a eles.

Médicos e cientistas há muito tempo traçam uma ligação entre saúde dentária e desenvolvimento econômico, em grande parte porque existe uma correlação entre dentes em bom estado e acesso à educação. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a dor decorrente de doenças dentárias atrapalha os estudos de muitas crianças em países em desenvolvimento.

Paula Vassallo, presidente de um grupo europeu de lobby que promove a saúde oral, disse que crianças com dor de dentes frequentemente dormem e comem mal, o que pode afetar seu desempenho na escola. As crianças com dor de dentes podem sofrer desnutrição e apresentar baixos níveis de vitamina D.

"Quando você está com dor desse tipo, não consegue dormir, não consegue comer bem, não consegue falar, não consegue ter desempenho", diz Vassallo, cuja Plataforma para a Saúde Oral Melhor na Europa recebe recursos de firmas de assistência odontológica. "O efeito sobre a Grécia será tremendo, não apenas o impacto econômico, mas também o impacto sobre a saúde, a qualidade de vida e a empregabilidade das pessoas."

Na família Papazoi, não é apenas Nikoleta que sofre com dor de dentes. A filha mais velha de Anthoula Papazoi, Elli, 16 anos, foi levada ao hospital às pressas no ano passado, sofrendo dor de um dente cheio de pus, mas foi mandada embora porque não havia dentista de plantão. Seu filho mais velho, Christoforos, 17 anos, fez uma obturação recentemente, e Anastasis, de 5 anos, evitou por pouco passar por um tratamento de canal este ano.

Papazoi, 44 anos, tem uma firma pequena que envia faxineiras e enfermeiras para trabalhos terceirizados. Ela parou de contribuir para a previdência social há três anos, quando não pôde mais arcar com o custo. Com isso, passou a engrossar as fileiras dos estimados 2,5 milhões de gregos que não têm acesso à assistência médica pública. Está devendo €900 (R$ 3.700) a quatro dentistas diferentes.

As dificuldades da família podem ser vistas por sua geladeira. Cinco anos atrás, ela ficava cheia de queijo, carne e verduras. Hoje contém aipo, um pouco de abóbora ralada e manteiga caseira que os pais de Papazoi mandaram de seu povoado. A alimentação da família é rica em carboidratos e açúcar. Os Papazoi comem arroz, macarrão e, de vez em quando, lentilhas.

"Antigamente eu sempre comprava frutas, mas agora não dá mais. Custa muito caro", disse Papazoi. "Nunca pensei que eu chegaria a este ponto: correndo de um lado a outro dia e noite, sem conseguir prover meus filhos das coisas mais básicas."

ENTREGAR OS PONTOS

Quase todos os dias Niki Diamanti vê pessoas passando por dificuldades semelhantes. A dentista de 42 anos estudou em Atenas e no Reino Unido, e mudou-se para Ioannina em 2010 depois de se casar com um habitante da cidade.

Com 112 mil habitantes, a cidade próxima da fronteira com a Albânia foi fortemente afetada pela recessão grega. Capital de uma região montanhosa do noroeste da Grécia, Ioannina tem grande população estudantil e produz queijo feta e água mineral. Mas é pobre. A renda per capita em 2012 foi de apenas €12 mil (contra €15 mil em 2008), um terço abaixo da média da Grécia, segundo os dados mais recentes.

Onde fica Ioannina

A recessão está afetando a saúde dentária da população local. Segundo a pesquisa da Federação Odontológica Helênica, a região em volta de Ioannina tem o pior índice nacional de crianças de 5 anos com dentes cariados.

"As pessoas entregaram os pontos, psicologicamente falando. Elas não se importam mais com a saúde, incluindo a saúde oral", comentou Yorgos Papazaharis, diretor da associação odontológica regional.

Devido a isso, ele disse, os dentistas estão tendo dificuldade em continuar exercendo sua atividade. Papazaharis estima que o custo do atendimento odontológico na região caiu 35% nos últimos seis anos. Hoje muitos dentistas tratam pacientes de graça.

Ao mesmo tempo, o IVA (imposto sobre o valor adicionado) sobre materiais médicos, como algodão e gaze, passou de 9% para 13% durante a crise. O IVA sobre outros materiais usados por dentistas chega a 23%, graças aos compromissos assumidos pela Grécia com o pacote de ajuda financeira.

Governos sucessivos vêm tentando cobrir as brechas. No ano passado, por exemplo, o governo grego disponibilizou para os cidadãos sem direito à assistência médica pública remédios gratuitos e assistência gratuita, incluindo a odontológica, em hospitais públicos. E em abril deste ano o governo do primeiro-ministro esquerdista Alexis Tsipras eliminou a taxa de € 5 (R$ 20) cobrada pelo acesso aos hospitais públicos. Mas os credores internacionais do país exigem que a taxa volte a ser cobrada ou que o governo encontre outra maneira de compensar pela receita perdida.

Pelo fato de tantas pessoas não conseguirem pagar atendimento particular, Diamanti diz que hoje às vezes precisa atender até 20 pacientes por dia. Os consultórios particulares cobram entre € 30 e € 50 (R$ 123 a R$ 204) para tratar uma cárie, € 150 (R$ 613) por um tratamento de canal e € 200 (R$ 818) por uma coroa. Para os gregos que têm acesso à saúde pública, o tratamento em hospitais públicos sai por muito menos. Mas apenas dois dos 199 dentistas de Ioannina atendem esses pacientes, que, por isso, podem levar meses para conseguir uma consulta. Muitas pessoas acabam engrossando as filas nas salas de emergência dos hospitais ou esperam até um dente ficar tão estragado que a única saída é a extração, disse Diamanti.

Sentada atrás de sua mesa, ela esfrega as mãos e os pulsos doloridos e comenta que uma das razões dos dentes estragados é cultural. "As pessoas de Épiro crescem achando que doces nos deixam mais felizes. Elas põem mel sobre as chupetas das crianças."

Agora, disse ela, muitos de seus pacientes não têm mais condições de comprar frutas ou verduras, então recorrem a alimentos processados. "É o açúcar. O açúcar é a comida dos pobres."

Alkis Konstantinidis - 27.out.2015/Reuters
Dentist Christos Naoumis treats a young boy at the Doctors of the World polyclinic in central Athens, Greece, October 27, 2015. Picture taken October 27, 2015. To match Special Report GREECE-TEETH/ REUTERS/Alkis Konstantinidis TPX IMAGES OF THE DAY ORG XMIT: PXP407
O dentista Christos Naoumis trata garoto em clínica em Atenas

A LUTA DE UMA FAMÍLIA

Em sua cozinha, com a panela no fogo, Anthoula Papazoi descreve seus problemas de saúde. Mulher robusta com cabelos ruivos e unhas bem cortadas, ela tem uma doença respiratória que é desencadeada pela fumaça de cigarros, perfumes fortes ou o cheiro de comida. Ela tem dificuldade em subir a escada para chegar a seu apartamento de dois quartos em um bairro de prédios baixos.

Seu pequeno negócio geralmente lhe garante entre € 30 (R$ 123) e € 60 (R$ 245) por mês, mas há meses em que ela não ganha nada. Ela recebe uma ajuda do Estado. No ano passado, uma família com quatro filhos ou mais recebia € 3.900 (R$ 16 mil) por ano, mas esse valor foi cortado agora para € 2.400 (R$ 9.800). Papazoi diz que devolveu ao governo em impostos mais de metade do que recebeu dele no ano passado. O que resta é gasto com o aluguel mensal de seu apartamento de 70 metros quadrados, que custa € 200 (R$ 818). Segundo Papazoi, seus gastos mensais às vezes chegam a € 1.000 (R$ 4.090). Ela desligou seu telefone fixo e deve centenas de euros em contas de água e luz.

Antes de ela se divorciar, a situação financeira da família era confortável. Papazoi trabalhava durante o dia, fazia compras no final da tarde e cozinhava à noite. Nunca faltavam comida ou roupas, ela disse, e as crianças ganhavam sapatos novos quando precisavam.

Agora o hall de seu apartamento também é seu escritório, repleto de estantes cheias de papéis, caixas de papelão e uma mesa empilhada com documentos e pastas. As paredes da sala, cheia de vasos de flores de plástico, estão com a tinta descascando. Papazoi disse que seu ex-marido, que não pôde ser entrevistado para esta reportagem, não ajuda com as despesas.

Suas duas filhas dividem um quarto lotado de caixas e roupas. Anastasis e seu irmão mais velho, Christoforos, dormem em um beliche no quarto de sua mãe.

Papazoi faz pão para seus filhos com farinha mandada por parentes. Seus filhos adoram leite, mas ela raramente tem condições de comprá-lo. Ela compensa o cálcio perdido com iogurte. No café da manhã, às vezes faz uma extravagância, servindo croissants de chocolate aos filhos.

"VOCÊ ESTÁ BRINCANDO?"

Angelos Priovolos, que tratou os dentes de três dos filhos de Papazoi, disse que os problemas da família são típicos. Muitas pessoas deixaram de fazer check-ups regulares, por medo de que o dentista encontre problemas que elas não terão condições financeiras de resolver.

Isso aconteceu no ano passado quando Elli começou a se queixar de dor em um dente de trás que estava cheio de pus. Em um primeiro momento, sua mãe lhe mandou ignorar a dor, dando paracetamol e antiinflamatórios à filha. Quando os remédios acabaram, Papazoi mandou Elli lavar a boca com tsipouro, uma espécie de conhaque grego.

Cathal McNaughton - 10.jul.2015/Reuters
Anthoula Papazoi's daughter Elli, 16, poses for a picture at her home in the city of Ioannina, Greece July 10, 2015. Picture taken July 10, 2015. To match Special Report GREECE-TEETH/ REUTERS/Cathal McNaughton ORG XMIT: PXP416
Foto de Elli, 16, filha de Anthoula Papazoi

As noites se tornaram insuportáveis. Papazoi e sua filha brigavam e acordavam Nikoleta. Exaustas, as duas garotas então passavam os dias do verão dormindo.

Uma tarde, quando a dor de Elli ficou insuportável, Papazoi mandou Christoforos levar sua irmã ao hospital. Mas não havia dentista de plantão, e os dois adolescentes foram mandados embora.

"Elli me ligou e começou a gritar comigo, dizendo 'você está brincando comigo? Por que me mandou vir para cá?'" lembrou Papazoi. Desesperada, ela mandou sua filha ao dentista particular Priovolos, que lhe deu tratamento básico. Mais tarde, depois de o inchaço ter diminuído, o dente foi obturado.

No verão deste ano foi a vez de Nikoleta. Um dia em agosto, o céu de sua boca e parte de sua garganta começaram a inchar devido ao dente infeccionado. Papazoi não se deu ao trabalho de tentar o hospital –levou Nikoleta a um especialista particular que abriu o dente e drenou o pus. O custo: €200 (R$ 818), mais um valor adicional pela remoção de um cisto formado em outro dente. Priovolos disse que esse tipo de cisto geralmente é encontrado em pessoas com mais de 60 anos.

Na véspera da consulta seguinte de Nikoleta, enquanto a família aguardava seu retorno, Papazoi cortou peras enviadas por sua mãe e as colocou num prato sobre a mesa da cozinha. Anastasis pegou da geladeira uma sobremesa de iogurte com flocos de chocolate.

"Você nunca compra o que a gente quer", brincou Elli ao entrar na cozinha, ignorando as peras.

A panela de carne ficou sobre o fogão, esfriando. O celular de Papazoi tocou. Era o dentista. Ela ouviu e depois desligou. "Serão mais €100 (R$ 409)", ela disse, saindo.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: