Folha de S. Paulo


Eleição na Argentina pode reforçar recuo da esquerda latino-americana

O bom desempenho do conservador Mauricio Macri no primeiro turno da eleição argentina, ficando em segundo lugar com apenas três pontos de diferença do governista Daniel Scioli, indica que o país pode estar prenunciando um movimento "antibolivarianista" do continente.

Nesse cenário, dizem analistas e especialistas ouvidos pela Folha, eleitores apresentam um voto de protesto contra governos ditos "nacional-populares" há muito tempo no poder.

Pesquisa realizada pela consultora Management & Fit a pedido do jornal "Clarín" e publicada neste domingo (8) mostra uma tendência de aumento das chances de Macri para vencer o segundo turno, no próximo dia 22.

EITAN ABRAMOVICH/AFP
O candidato oposicionista à Presidência, Mauricio Macri, discursa durante comício na capital argentina no sábado (7)
O candidato oposicionista Mauricio Macri discursa durante comício na capital argentina no sábado (7)

O líder da coligação Mudemos surge em primeiro, com 51,8% das intenções de voto, seguido de Scioli, com 43,6%. Para chegar a esse resultado, a pesquisa explica que realizou "uma projeção" do voto de 11% dos indecisos, enquanto 4,5% declararam que votarão em branco.

"A esquerda governa grande parte da América Latina há tempos, e a economia vai mal em quase toda a região. É por isso que vem ocorrendo essa guinada, que não tem tanto a ver com a ideologia, e sim com o cansaço em relação às medidas apresentadas pelos governos para enfrentar a crise", disse à Folha Steven Levitsky, da Universidade Harvard.

Já para o sociólogo argentino Vicente Palermo, uma mudança em seu país pode influenciar o continente. "A saída do kirchnerismo não afetará a política regional, mas haverá uma influência enorme se Macri vencer e fizer um bom governo. Poderia contribuir para uma mudança de cenário no continente. É a eleição do cansaço e do voto castigo", afirmou.

OUTROS PAÍSES

Fenômenos similares vêm ocorrendo em outros países, como o próprio Scioli lembrou no dia seguinte ao primeiro turno.

"No Brasil e no Uruguai, os governos nacional-populares enfrentaram nas últimas eleições um aumento da reclamação da direita. É preciso refletir e discutir sobre isso", disse. O candidato governista referia-se às dificuldades que Dilma Rousseff e Tabaré Vázquez tiveram para se eleger, ambos no segundo turno. Enquanto o PT está no poder há 12 anos, a Frente Ampla uruguaia está há 10. O kirchnerismo, há 12.

"O desgaste do PT, da Frente Ampla e do kirchnerismo são parecidos. Itens de seu discurso perderam apelo, como o patriotismo, a soberania e a ideia de que só a esquerda pode satisfazer a Justiça popular", diz o analista uruguaio Mauricio Rabuffetti.

Ele acrescenta que a oposição de direita uruguaia usou estratégias parecidas com as empregadas pelo Cambiemos (Mudemos) na Argentina. "Há uma renovação do discurso pedindo diálogo, consenso, propostas em vez de ataques, além de muita atuação nas redes sociais", afirmou.

No caso uruguaio, o candidato de direita Lacalle Pou provocou o segundo turno, mas acabou derrotado por Vázquez.

Outro caso na região que indica o desgaste do discurso "nacional-popular" aliado à crise econômica é o da Venezuela, cujas eleições parlamentares do próximo dia 6 podem indicar um enxugamento do chavismo,
no poder há 16 anos.

Na Bolívia, apesar da popularidade de Evo Morales (há dez anos no cargo) e sua aposta para um quarto mandato, as últimas eleições regionais mostraram uma redução do poder do governista MAS, que perdeu redutos importantes, como a cidade de El Alto.

CONQUISTAS SOCIAIS

Na Argentina, o governo tem se apegado à defesa das conquistas sociais dos últimos 12 anos para tentar conter o avanço da oposição. Em sua última aparição publica, na sexta (6), a presidente Cristina Kirchner
foi explícita.

"Mais do que estar agradecido, que pode soar 'se está melhor, tem que agradecer', é preciso compreender por que você está melhor. Compreender que o Estado reconheceu o seu esforço. Se você comprou seu carro, sua casa, viajou ao exterior é por seu esforço. Mas antes você trabalhava e se esforçava também. Isso significa que, se não temos um Estado que reconheça este sacrifício, não serve de nada", disse.

Para Palermo, trata-se de um discurso típico de candidatos governistas quando se veem ameaçados pela concorrência.

"Os governos, quando veem que estão sendo contestados, e têm um ativo político que conquistaram, apelam para o discurso de que 'se votam pela oposição, vão perder o que lhes demos'", diz ele.

sucessão argentina

O cientista político Alberto Carlos Almeida, do instituto Análise, observa que não se trata de uma estratégia de direita ou de esquerda.

"O próprio Fernando Henrique usou esse discurso em 1998. Elogiava Lula, mas dizia que ele não estava preparado para governar. É uma forma de segurar o voto dos eleitores que já estão contigo", diz.

Em 2002, o PSDB reeditou a estratégia, com um depoimento da atriz Regina Duarte, em que dizia textualmente que "tinha medo" de um governo petista.

MOMENTO PROPÍCIO

Na Argentina, segundo Palermo, existe um momento político mais propício à mudança. "Como no caso brasileiro, os programas sociais e trabalhistas não estão em jogo. É mentira afirmar que eles acabariam com Macri", diz.

Um obstáculo a mudanças nesse sentido estaria no fato de o próximo governante, seja quem ganhe, não terá vantagem parlamentar. "Seria uma batalha legal muito complicada reverter estes direitos", afirma.

Levitsky reforça que, "salvo em países com histórico de violência como Colômbia, Peru e El Salvador, a direita continua sendo muito fraca na América Latina. Não deve se confundir o voto contra o oficialismo com um giro à direita.'


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