Folha de S. Paulo


'Prioridades argentinas mudaram', avalia ex-ministro

Para o kirchnerista Daniel Filmus, 60, a surpreendente votação da oposição no primeiro turno da eleição presidencial argentina é resultado de avanços obtidos pelo governo nos últimos anos.

"É algo parecido com o que ocorre no Brasil. Há uma nova classe média, portanto, novas demandas. A força política que quiser governar precisará atendê-las", afirma ele.

Ex-ministro da Educação sob Néstor Kirchner (2003-07), Filmus comanda a secretaria para assuntos relacionados às ilhas Malvinas e foi apontado por Daniel Scioli como provável ministro da Ciência, caso este vença a votação no próximo dia 22.

Filmus conversou com a Folha em seu escritório, no Ministério de Relações Internacionais, em Buenos Aires.

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Pablo Porciuncula/AFP
O ex-ministro da Educação Daniel Filmus, derrotado por Macri na eleição de 2011 em Buenos Aires
O ex-ministro da Educação Daniel Filmus, derrotado por Macri na eleição de 2011 em Buenos Aires

Folha - O que houve domingo?

Daniel Filmus - Sempre achei que haveria segundo turno. Só que esperávamos uma vantagem maior para Scioli. Esses resultados mostram as transformações na Argentina nos últimos anos.
Quando assumi o Ministério da Educação, em 2003, as nossas preocupações eram outras. O debate era simplesmente se nós conseguiríamos chegar ao fim do mês. Tínhamos duas de cada três crianças vivendo abaixo da linha da pobreza. Tínhamos crianças que iam à escola apenas para comer. Havia 25% de desemprego. Nossas prioridades eram outras.

E hoje?

Hoje se desenvolveu uma nova classe média, de modo muito parecido com o que ocorreu no Brasil, integrando ao consumo setores que estavam afastados. A situação em que estamos é outra. Estamos melhores na área energética, industrial, na produção de alimentos. Mas, claro, essa situação produz novas demandas. Por isso defendo a continuidade com mudança.

É preciso adequar-se, mas avançar na direção em que estávamos indo. Colocamos as crianças na escola? Ótimo, agora precisamos discutir a qualidade educativa. As pessoas têm trabalho? Sim, agora é preciso acabar com o trabalho informal.

E assim por diante. Se uma liderança política não consegue se adaptar a novas situações, é complexo. É o que está acontecendo no Brasil.

Qual vai ser a estratégia de Scioli agora?

Creio que vai seguir com o discurso da continuidade, mas não adianta fazer campanha dizendo apenas o que já foi feito, é preciso apontar para a frente. Creio que ficarão mais claras, agora, as diferenças entre os candidatos.

Como sociólogo, como vê o inédito segundo turno? Haverá mudança na política argentina, na qual nunca foram comuns alianças entre partidos?

Não creio que teremos mais alianças, pelo menos do ponto de vista formal. Penso que os apoios ocorrerão informalmente: os setores que vêm do peronismo e do progressismo irão se agrupar com Scioli, enquanto os setores mais conservadores e tradicionais se agruparão em torno de Macri.

Como é competir contra Mauricio Macri [Filmus, da Frente para a Vitória, o enfrentou na eleição para chefe de governo de Buenos Aires em 2011]?

Concorri com ele numa cidade que é, justamente, a que mais se beneficiou das mudanças que o kirchnerismo promoveu. Em Buenos Aires, o peronismo não ganhava nem com Perón vivo. O peronismo vencia no país todo e não aqui. Isso não mudou.

É preciso lembrar que Macri não compareceu aos debates durante a campanha de 2011. Teve uma atitude igual à que critica em Scioli hoje.

Mas uma coisa é ganhar em uma cidade como Buenos Aires, onde a maior parte da população pode prescindir de um Estado presente. Para ganhar no país, Macri tem de mudar de discurso.

E ele já vem fazendo isso. Está falando bem das estatizações, defendendo o atual status da [petroleira] YPF, das Aerolíneas [ambas estatizadas nos últimos anos] e dizendo que continuará com a política de benefícios sociais.

Não é por acaso. Num nível nacional, se ele não defender essas bandeiras, terá menos chances de ganhar.


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