Folha de S. Paulo


Vitória dos liberais deve reduzir alinhamento do Canadá aos EUA

Com a vitória do Partido Liberal nas eleições desta semana, o Canadá pode voltar aos tempos de Trudeau: a vitória de Justin Trudeau, 43, é um marco de reencontro da nação com os valores com que seu pai, Pierre Elliott Trudeau (1919-2000), a governou durante 16 anos.

Trudeau substituirá Stephen Harper, do Partido Conservador, que governou num estilo mais beligerante e intransigente, tanto em política externa quanto domesticamente, na contramão do que se tornou marca registrada do país como uma espécie de "EUA sem os defeitos".

Harper, 56, mandou tropas ao Iraque, auxiliou bombardeios dos EUA contra o Estado Islâmico, propôs legislação dura contra o terrorismo, tentou enrijecer o combate ao uso de drogas e restringir o uso de símbolos religiosos como o niqab (véu islâmico), desprezou ações para diminuição do efeito estufa.

Na direção oposta, a plataforma de campanha de Trudeau contemplou a legalização da maconha, o afastamento do Canadá de ações bélicas no exterior, metas ousadas para limitação de emissão de carbono, políticas macroeconômicas ambientalmente sustentáveis.

Chris Wattie - Reuters
O líder do Partido Liberal do Canadá, Justin Trudeau, pouco antes de fazer o discurso da vitória
O líder do Partido Liberal do Canadá, Justin Trudeau, pouco antes de fazer o discurso da vitória

Os canadenses, ao conferirem aos liberais sólida maioria na Câmara (184 cadeiras num total de 338, contra 99 dos conservadores e 44 dos socialistas), rejeitaram o alinhamento com os EUA na política externa e a austeridade na economia que Harper lhes vinha oferecendo.

Enquanto conservadores garantiam manter gastos públicos contidos e Orçamento equilibrado, Trudeau ofereceu uma alternativa ousada: três anos de deficit primário para estimular a economia com projetos de infraestrutura financiados pelo Estado.

Entre seus assessores está Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, que o incentivou a aproveitar os atuais juros baixos para tomar empréstimo e tirar o país da beira da recessão devido à baixa dos preços do petróleo e outras commodities.

A vitória de Justin Trudeau não poderia ter sido mais expressiva: nunca antes um partido tinha dado um salto tão grande no número de assentos na Câmara. Os liberais passaram de 36 para 184.

Os conservadores caíram de 159 para 99, e o PND, socialista, de 95 para 44. A derrota dos socialistas, favoritos para vencer no início da campanha, é outra demonstração da opção por políticas econômicas mais ousadas.

O líder do PND, Tom Mulcair, impressionado com o sucesso de Harper, que venceu três eleições seguidas, resolveu afastar-se das teses tradicionais de seu partido e defendeu Orçamentos equilibrados, além de ter tergiversado na questão do uso de símbolos religiosos.

O resultado foi ver a liderança nas pesquisas, confortável há só dois meses, esvair-se ao longo da campanha.

Deu-se o inverso com Trudeau, a princípio visto como pouco experiente. Sempre foi celebridade por ser o filho de Trudeau, o mais popular político canadense do século 20, mas nunca deu muita importância para a política.

Para ganhar a vida, foi professor de francês e matemática. Para fazer o que gostava, comandou programas de rádio e praticou bungee-jumping.

Diletante, cursou literatura, engenharia e geografia.

Só em 2008 disputou uma cadeira na Câmara, em Montreal. Venceu por pouco. Tomou gosto.

Impulsionado pelo nome e seus próprios charme e inteligência, galgou postos no partido até chegar à sua liderança, em 2013.

Casado com Sophie Grégoire, famosa apresentadora de TV local, tem dois filhos (de 1 e 8 anos) e uma filha (de 6).

Harper fez uma campanha agressiva, desprezando a juventude de Trudeau, que revidava com descontração.

Nesta segunda (19), Trudeau disse: "Uma visão positiva da vida pública não é um sonho ingênuo, pode ser uma força poderosa pela mudança". As urnas o confirmaram.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, livre-docente e doutor em comunicação pela USP, é editor da revista "Política Externa"


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