Folha de S. Paulo


Sob novo governo, iranianos voltam cautelosamente às ruas

Ahmad Halabisaz/Xinhua
Garotos iranianos tiram selfies ao lado da nova instalação luminosa da torre Azadi, na capital, Teerã
Garotos iranianos tiram selfies ao lado da nova instalação luminosa da torre Azadi, na capital, Teerã

Quando a música terminou e a plateia se levantou para aplaudir de pé, era possível perceber diversas espectadoras de cabeça descoberta, com seus véus obrigatórios repousando sobre os ombros.

Não era um show clandestino de uma banda indie no norte de Teerã, porém. Na verdade, tratava-se de um recital de alaúde clássico no Vahdat Hall. À medida que o teatro de ópera se esvaziava, as mulheres recolocavam os véus e depois saíam do teatro. Ninguém parecia se incomodar, ou mesmo perceber.

Longe de ser protesto ou gesto político, a cena era uma ilustração transitória da autoconfiança recentemente redescoberta dos iranianos, visível por toda a capital –algo que os iranianos mesmos estão chamando de "movimento do estilo de vida".

"Ninguém se incomodou, porque na prática as pessoas estão bem adiante das normas estabelecidas pelo governo", disse Halel Anvari, ensaísta radicado em Teerã que assistiu ao concerto. "Nos carros, cinemas e concertos, as pessoas comuns estão cada vez mais ocupando seus espaços."

Os iranianos sempre desfrutaram de vidas particulares ricas, e alguns deles seguem modas e tendências ocidentais, mas por trás de portas fechadas. O Estado tolera esse comportamento, mas insistia em que, nos espaços públicos, as pessoas respeitassem rigorosamente as normas quanto a aparência e comportamento impostas depois da revolução islâmica de 1979.

Esse descompasso resultou em um perpétuo jogo de gato e rato, com as liberdades públicas virtualmente desaparecendo depois da muito contestada eleição presidencial de 2009.

Mas agora, depois da eleição de Hasan Rowhani, um presidente moderado, e da assinatura do acordo nuclear, algumas semanas atrás, os iranianos estão cada vez mais saindo às ruas, desta vez não para desafiar o governo, mas para reocupar os espaços públicos.

Embora existam muitos céticos que afirmam que as mudanças são mínimas e podem ser revertidas a qualquer momento, o movimento do estilo de vida parece estar se espalhando pelo país.

"Pouca gente o diria em voz alta, mas tínhamos nos tornamos quase um Estado policial", afirmou Jamid Reza Jalaeipour, sociólogo da Universidade de Teerã, sobre os anos posteriores a 2009, quando a polícia da moralidade era presença constante em todas as praças públicas, removendo em furgões fechados as mulheres que eles considerassem como "insuficientemente veladas".

Para muitas pessoas, a atmosfera se tornou tão sufocante que elas começaram a partir para outros países.

AUTOCONFIANÇA

Jalaeipour diz que pequenas mudanças começaram a surgir quando Rowhani substituiu o antigo presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2013, prometendo um acordo nuclear e a expansão das liberdades pessoais, mas que elas avançaram mais, recentemente.

"Especialmente depois das eleições e, agora, do acordo nuclear", ele disse, "a autoconfiança das pessoas comuns está crescendo e pode ser vista em toda parte."

A mudança é de fato palpável em um país que, no passado, tinha a polícia da moralidade espalhada por toda a cidade; desencorajava o uso de qualquer outra cor que não o preto, para roupas; e, nos últimos anos, havia começado a sepultar os restos mortais de mártires da guerra Irã-Iraque no centro de suas praças públicas.

De repente, há muito mais shows de música entre os quais escolher, e iniciativas públicas como campanhas para boicotar as montadoras de carros iranianas a fim de pressioná-las a melhorar a qualidade de suas ofertas, ou para salvar os gatos de rua, começaram a se espalhar pela capital.

A única linha vermelha é a política, diz muita gente em Teerã. Qualquer manifestação com um lado político será impedida de imediato.

Mesmo assim, restam muitas aberturas para as pessoas capazes de percebê-las, como Ehsan Rasoulof.

Filho de um rico banqueiro, Rasoulof, 32, parece o típico aspirante a artista iraniano, usando camisa xadrez, jeans desfiados e fumando ininterruptamente os cigarros do Irã, que têm a metade do tamanho dos ocidentais. Em lugar de dirigir um Maserati, como outros filhos da elite, ele anda de táxi.

"Não sou de esquerda nem de direita. Não poderia ligar menos para a política", diz. "Minha missão na vida é retomar nossos espaços públicos."

Ele disse que muitos iranianos estavam determinados a reconquistar as liberdades de que desfrutaram depois da eleição de Mohammad Khatani, moderado que foi presidente entre 1997 e 2005 –mas sem o lado político.

A vitória de Khatani foi como se uma barragem se rompesse, inundando a sociedade fechada do Irã de ambições juvenis. Os jornais se abriram, meninos e meninas começaram a conviver e, no pico do que alguns chamam de "primavera iraniana", estudantes confrontaram as forças de segurança por seis dias depois que um jornal foi fechado.

Mas a oposição conservadora foi crescendo e culminou nos anos da presidência de Ahmadinejad, dedicada a destruir a sociedade civil que havia emergido, o que incluiu a prisão e o exílio de seus arquitetos.

Hoje os moderados voltaram, mas operam cautelosamente - como eles mesmos dizem, é como se estivessem dirigindo de noite em um carro com faróis apagados.

SEM MUDANÇA POLÍTICA

Sentado em um escritório partidário recém-aberto, Ali Shakorirad, o presidente do Partido da União Nacional Islâmica Iraniana, reformista, diz não ter uma agenda clara. "Por enquanto, estamos só tentando sobreviver".

A maioria dos iranianos não pensa muito em mudança política, hoje em dia. Em lugar disso, o foco é responsabilidade social.

"Durante a era de Ahmadinejad, percebemos que, se ficássemos de fora, sairíamos perdendo", disse Sohrab Mahdavi, membro de um grupo que está pressionando o governo pela despoluição do ar notoriamente nocivo de Teerã. "Se desejamos ser bons cidadãos, precisamos começar assumindo diretamente as responsabilidades".

O sociólogo Jalaeipour disse que não estava certo sobre a direção que esse novo ativismo estava tomando, ou sobre até que ponto ele avançaria. É da natureza desses movimentos migrar para o reino da política, ele disse. "E isso é definitivamente um desafio àqueles que estão no poder."

Mas os avanços no espaço público são aparentes em toda parte, ele diz, e reprimi-los pode não ser tão fácil. "Hoje se vê mulheres levando o lixo para a rua sem seus véus", ele disse. "Mandar todas essas pessoas de volta para casa parece difícil."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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