Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Intervenção russa pode cristalizar várias 'pequenas Sírias'

Um punhado de aviões russos bombardeando alvos na Síria tem impacto muitíssimo mais político que propriamente militar. As operações de combate da guerra civil síria não mudarão drasticamente pela intervenção de uma, duas, quiçá três dúzias de aviões de ataque ao solo como o veterano Sukhoi Su-25 (já usado na invasão do Afeganistão nos anos 80...).

Porém a atual intervenção do urso russo pode ser a ideia por trás não da vitória final do líder sírio Bashar al-Assad (muito difícil hoje), mas da cristalização de um status quo em que a Síria vire várias pequenas Sírias: parte Assad, parte drusa, parte curda, parte rebelde sunita, parte Estado Islâmico. Só falta a paz.

Uma dessas Sírias, com o apoio russo, teria a maioria da população pró-Assad e controlaria o que fosse possível dos cada vez mais escassos recursos do dilacerado país árabe (basicamente, petróleo, mineração e agricultura).

E, ao contrário do resto do país, teria total acesso ao mar Mediterrâneo pelas duas governadorias (províncias) de Latakia e Tartus -exatamente onde os russos têm hoje suas bases naval e aérea.

Abdalrhman Ismail - 3.set.2015/Reuters
Integrantes do Exército Livre da Síria inspecionam arma antes de combater militantes do EI em Aleppo
Integrantes do Exército Livre da Síria inspecionam arma antes de combater militantes do EI em Aleppo

Como as estratégias militares baseadas principalmente em ataques aéreos têm demonstrado desde o final da Segunda Guerra, são poucos os casos em que são bem-sucedidas sem um esforço correspondente de tropas terrestres, o que os americanos chamam de "botas no solo".

Chamam e temem, pois ataques aéreos causam poucas baixas entre os atacantes dotados de aviões modernos, especialmente se são feitos a partir de altitudes médias ou altas com munições guiadas precisamente; mas as tropas no chão tendem a morrer em bem maior quantidade.

Isso explica por que um ano de ataques aéreos ocidentais quase nada mostrou de sucesso na Síria. E também a relutância ocidental em enviar tropas terrestres -no caso dos EUA, logo após os traumas de Iraque e Afeganistão.

Assad não tem soldados ou armas suficientes para aproveitar o apoio aéreo russo. O Exército sírio, que durante décadas ameaçou Israel com milhares de tanques e blindados de origem soviética (depois russa), derreteu.

Soldados desertaram -notadamente muçulmanos sunitas, servindo um Exército controlado por oficiais alauitas (corrente xiita à qual pertence Assad). Veículos, aviões, navios de guerra foram abandonados e deixaram de ser operacionais, como é a praxe em guerras civis. O líder sírio tem poucas opções militares.

Os russos não foram nada honestos na sua intervenção. Supostamente teriam bombardeado posições do mega-fundamentalista EI. Na verdade, lançaram as bombas contra outros rebeldes anti-Assad -exatamente aqueles apoiados pelos EUA e seus aliados europeus e árabes.

TECNOLOGIA

Compreender o que se passa numa guerra civil sempre foi um dos maiores desafios jornalísticos. A tecnologia atual ajudou a entender os ritmos das marés numa guerra como a da Síria. Celulares, redes sociais, internet: basta pesquisar, que se vai achar.

Por exemplo, o Centro Carter tem um programa de monitoramento da guerra civil na Síria baseado em informações da população síria.

Os dados permitem monitorar quem está de posse de qualquer cidade do país e quais grupos rebeldes estão ativos -e, agora, o centro mostra onde os russos têm concentrado ataques aéreos.

Infelizmente para a reputação russa, os dados mostram que os rebeldes, e não o EI, receberam a maior parte das bombas dos Sukhoi Su-25 e seus primos mais modernos.

Análises de imagens de satélite permitem mostrar a extensão dos danos nas cidades mais atingidas, como a ex-maior do país, Aleppo, hoje um mero campo de batalha.

A cidade era bem iluminada antes da guerra. Hoje, está 91% mais escura; a maior parte da população fugiu, e a oferta de energia elétrica foi na maior parte destruída.


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