Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Na Síria, Putin começa o jogo na dianteira

Os primeiros ataques aéreos russos na Síria coroam a jogada estratégica do presidente Vladimir Putin ao intervir na guerra civil do país árabe. No primeiro momento, apesar dos grandes riscos envolvidos, tudo está dando certo para o Kremlin.

Nas últimas semanas, sem aviso prévio, a Rússia montou uma base aérea em Latakia, região da minoria alauita à qual pertence o comando do regime sírio de Bashar al-Assad.

O ditador, aliado histórico de Moscou, até então só tinha conseguido dos russos apoio diplomático: foi Putin quem desfez a insinuada ação americana contra o regime, imerso em uma guerra civil que já matou mais de um quarto de milhão de pessoas desde 2011.

Latakia hoje abriga pelo menos dois esquadrões de aviões de ataque ao solo Sukhoi-24 e Sukhoi-25, além de algumas das versões do caça Sukhoi-27, de superioridade aérea. Suspeita-se que defesas antiaéreas sofisticadas já tenham chegado ou estejam a caminho.

Um vídeo postado da região de Hama nesta quarta insinua, pela silhueta nos céus, que um dos dois modelos de ataque foi utilizado. O Kremlin não deu detalhes operacionais da ação.

No fim de semana, Moscou havia chocado os EUA ao incluir o Iraque num comitê de troca de informações de inteligência sobre o Estado Islâmico ao lado de seus tradicionais parceiros na região, Irã e Síria. O Iraque, afinal de contas, é aliado americano e parceiro na coalizão ocidental que mira o EI.

Com o trunfo, Putin desembarcou pela primeira vez em dez anos para falar na Assembleia Geral da ONU. Foi contundente e estabeleceu sua linha: só há solução para a Síria que inclua o regime de Assad.

Obama, em que pese o usual charme e boa retórica, só conseguiu repetir as obviedades de sempre. Desde 2011, sua gestão titubeia, insistindo em que qualquer saída para a guerra civil passe pela queda do ditador.

Hoje aviões americanos só atacam alvos do EI, e ainda assim de forma limitada, porque a barbárie da facção e a crise dos refugiados se fizeram muito evidentes.

O líder americano até fez seu show, convocando dezenas de aliados para discutir ações contra o EI, mas a prática se viu nos céus da Síria _e com jatos russos.

Naturalmente, como em toda ação liderada por Putin, as agendas ocultas são tão importantes quanto as públicas. Se diz que quer erradicar o EI, o russo não conta o quanto está disposto a destruir os rebeldes de outras facções, apoiados pelos EUA e Estados do Golfo preocupados em conter o poder regional do Irã.

Analistas em Moscou são unânimes em dizer que o Kremlin vai ajudar Assad a sobreviver, ainda que para ao fim promover uma transição negociada. E que, aos olhos russos, o EI é tão nocivo quanto os outros rebeldes.

Presença russa na Síria
PRESENÇA RUSSAOnde estão os militares do país na Síria
PRESENÇA RUSSAOnde estão os militares do país na Síria

O ataque inicial russo ocorreu em região ainda sob domínio do governo de Assad, colocando dúvidas sobre quais foram seus alvos —assim como não há transparência plena sobre aqueles atingidos pelos ocidentais.

Do ponto de vista ocidental, especialistas apontam o tradicional cinismo de Moscou em ocultar suas intenções, como fez durante o processo de anexação da Crimeia —em que pese o fato de que ela decorreu da derrubada por golpe do governo pró-russo da Ucrânia. Não há inocentes neste jogo.

Há riscos adicionais, como o de um confronto não intencional entre forças russas e ocidentais. No caso desta quarta, os ataques foram bem mais a oeste dos pontos usualmente bombardeados pela coalizão americana. Mas isso não quer dizer que acidentes não possam acontecer.

Putin busca dois objetivos mais aparentes. Primeiro, tornar-se um fator central para a estabilização do Oriente Médio, ainda que às custas de um redesenho do mapa da Síria sob linhas étnico-confessionais.

Com isso, estará em posição de força para tornar sua presença na Ucrânia um fato consumado e tentar retirar as sanções que asfixiam a economia russa e o colocam contra a parede.
Segundo, ter uma presença militar que lhe permita projetar poder na região do Mediterrâneo, assegurando suas rotas de exportação de hidrocarbonetos da Ásia Central.

Se o plano dará certo é incógnita, mas o presidente russo saiu com vantagem na primeira rodada.


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