Folha de S. Paulo


De volta para casa, sírios se adaptam a cotidiano sob ameaças constantes

O Estado Islâmico massacrou 12 membros da família da funcionária pública Berivan Hassan no dia 25 de junho deste ano.

Os extremistas se infiltraram na cidade síria de Kobani disfarçados de soldados do YPG, a milícia curda que combate o EI. Berivan estava em casa quando ouviu um ruído. Seu irmão saiu para ver e foi assassinado. A esposa dele acudiu e também morreu. A mãe quis ajudar e foi morta.

Raushan Khalil/Folhapress
Família que teve a casa destruída em Kobani, no norte da Síria, hoje vive em ruínas
Família que teve a casa destruída em Kobani, no norte da Síria, hoje vive em ruínas

Os milicianos, então, entraram e atiraram na esposa de outro irmão de Berivan, que levava no colo o filho de dois meses. A criança sobreviveu, mas a mãe morreu diante do outro filho, de dois anos. Mataram mais dois irmãos, um tio e cinco parentes dele.

Naquela noite, massacraram 258 civis na cidade.

Berivan já tinha perdido o pai em 2013, por causa de um carro bomba do EI no centro de Kobani, e uma irmã, que morreu no front em 2014.

Hoje, ela e os três irmãos que sobraram cuidam de seis sobrinhos órfãos, com idades entre quatro meses e 15 anos.

Traumatizada com a guerra, Berivan pensou em fugir da Síria. Mas mudou de ideia. "Depois de toda a minha família ter se sacrificado, não tenho o direito de ir embora."

Editoria de arte/Folhapress

Assim como Berivan, muita gente desistiu de emigrar para a Turquia ou Europa e preferiu voltar para casa.

Segundo Ismet Mohammed, 48 anos, administrador da fronteira entre Kobani e Suruç, Turquia, cerca de 4.000 sírios por semana estão voltando da Turquia e só cem fazem o trajeto inverso.

"As pessoas viram muita gente morrendo no mar, assustaram-se e chegaram à conclusão de que ir para a Europa não é a solução. Elas precisam reconstruir a Síria", disse Mohammed.

RECONSTRUIR

A reconstrução será uma tarefa gigantesca.

Entre setembro de 2014 e janeiro de 2015, durante o cerco do EI, a luta contra os extremistas e subsequentes bombardeios aéreos dos americanos para liberar Kobani destruíram 70% da cidade. Hoje, grande parte dos habitantes mora em ruínas.

O agricultor Ismail Bilal é um dos que fugiram para a Turquia e decidiram voltar.

Ao chegar a Kobani, ele se deparou com sua casa destruída. Hoje, Ismail e a família de dez pessoas dormem ao ar livre, no espaço onde um dia foi sua cozinha. Só sobrou um cômodo da casa de pé. Ismail está desempregado, e a única filha que trabalhava, de 16 anos, hoje está no YPJ, o Exército feminino.

Raushan Khalil/Folhapress
Ruinas de Kobani, cidade no norte da Síria, na fronteira com a Turquia
Ruinas de Kobani, cidade no norte da Síria, na fronteira com a Turquia

"Não vou embora, é a minha cidade. Tenho fé que as coisas vão melhorar."

Apesar do fluxo de volta, dos 130 mil habitantes de Kobani, só estão na cidade 35 mil. O cantão chegou a ter 350 mil, e hoje só tem 100 mil.

A falta de empregos é o maior desafio.

Na última quarta, dia 23, Ahmed Mustafa, de 17 anos, estava na fronteira da Síria esperando para cruzar para a Turquia. De lá, ele ia pagar US$ 200 para um coiote levá-lo até o Curdistão iraquiano, atravessando um rio clandestinamente, com água pelo pescoço. "Aqui eu ganho no máximo US$ 100, e lá, US$ 800 por mês trabalhando em construção", justificava.

Segundo Bozar Khalil, ministro do Interior do cantão de Kobani, o governo está fazendo um mutirão, empregando na reconstrução da cidade muitos dos habitantes que retornam.

"Mas alguns estão traumatizados com os massacres e não vão voltar", diz.

TREINANDO MENINOS

O EI ainda está em Sarrin, a apenas 40 km de Kobani.

"Este front é crítico", afirma o comandante Mirhaz Botan, em um dos postos do YPG. "O EI montou um centro onde está treinando cem meninos a partir de 14 anos."

Os curdos do YPG trabalham em conjunto com os americanos, passando a eles coordenadas de GPS de onde estão os militantes do EI para que a coalizão bombardeie.

Os soldados ouvem o barulho dos jatos americanos e brincam, olhando para cima, usando a palavra curda para "camarada": "Heval Obama!".

A maioria dos vilarejos está deserta, pois todos os civis fugiram. Por todo lado, veem-se placas vermelhas com uma caveira, indicando a existência de minas.

Os habitantes de Kobani tentam se adaptar a uma vida sob ameaça constante.

Shireen Misko, 15, mora numa casa sem móveis –foi tudo queimado pelo EI para fazer fumaça e atrapalhar os ataques aéreos americanos.

Ela mexe na AK-47 encostada no chão com a desenvoltura com que comenta a novela de Bollywood que está acompanhando pela TV.

"Meu sonho é ser cientista como o [Albert] Einstein, mas talvez eu entre no YPJ para proteger minha família", diz. "Nossa vida virou de cabeça para baixo. Enquanto a maior preocupação das meninas na Europa é ter namorado ou não, eu não sei se o Daesh [sigla em árabe para o Estado Islâmico] vai voltar amanhã e matar todo mundo."

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CRONOLOGIA
Conflito se arrasta há quatro anos na Síria

2011
Protestos explodem na Síria após forças do governo matarem manifestantes; governo tenta sufocar reações

2012
Mais de cem civis são mortos em ataques do governo; grupo Exército Livre da Síria mata três oficiais e toma Aleppo

2013
ONU aponta uso de armas químicas em ataque que matou 300; Assad aceita inspeções

2014
Estado Islâmico decreta "califado" de Aleppo até a província de Diyala, no Iraque, e captura Raqqa; EUA mais cinco países iniciam bombardeios

2015
Curdos expulsam EI de Kobani; aliança rebelde captura Idlib; EI toma Palmira, cidade histórica


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