Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Necessidade de humanização responde dilema sobre foto de menino morto

Aylan morreu na praia, em algum momento de uma madrugada de setembro. Seu corpinho de três anos foi cuspido pelo mar nas areias da Turquia, em Bodrum, as mesmas por onde caminham turistas e por onde outros refugiados chegam às centenas.

Tinha um irmão de cinco anos, Galip, e pai e mãe que o puseram num bote em fuga da Síria, em guerra civil desde antes de ele nascer.

Queriam chegar à Grécia, já saturada de gente em fuga, e dali seguir para o Canadá, onde estava parte da família. Mas não tinham visto. Não tinham papéis, como outros muitos, e o traficante de gente que pagaram os abandonou. Sua mãe, Rihan, também morreu, assim como o irmão, Galip. O pai, Abdullah, 40, sobreviveu.

Como Aylan Kurdi, corpos inertes de crianças sírias, afegãs, líbias, eritreias, sudanesas e de outras várias nacionalidades jazem nas areias do Mediterrâneo todo dia.

Há fotos demais de pequenos cadáveres, sem nome nem história diariamente circulando pela internet. Foram 24 mil crianças e adolescentes que cruzaram o Mediterrâneo no ano passado, e estima-se que em 2015 seja muito mais. Parte delas pereceu.

Por que a imagem de Aylan, 3, comoveu mais do que as outras, por que ela teve que ser divulgada e por que ela imediatamente provocou ações concretas de políticos são perguntas a fazer.

Aylan, afinal, morreu como morreram outras quatro crianças espremidas e sufocadas com mais 67 adultos em uma minivan abandonada em uma estrada da Áustria. Porque a realidade é grotesca, a van estampava imagens de frangos e presuntos.

Por que não nos comovemos com esses corpos, que mal puderam ser identificados? Por que não com os que vagam pelas ruas de países periféricos europeus, buscando receberem reconhecimento como refugiados e recomeçarem? Por que não com os que nem chegam a deixar a Síria?

APELO DIRETO

A primeira e mais fácil resposta é a identificação.

O corpo de Aylan foi devolvido à praia na posição em que muitas crianças pequenas dormem. Suas roupas de passeio poderiam ser usadas pelo meu filho, pelo seu, por qualquer criança da convivência da grande e dissonante "comunidade ocidental".

Sua placidez, em contraste com as cenas de desespero que se sobrepõem nesta crise, tem um efeito perturbador, porque aquele corpo pequeno, naquela posição, não pertence àquele lugar.

A segunda questão imposta é o uso do corpo de uma criança para chamar a atenção para uma campanha, ainda que nobre e que de fato carece da atenção do mundo.

Aylan, obviamente, não sabia o que fazia naquele barco. Morreu sem saber para onde rumava. É justo que seu corpo volte a ser explorado, exibido de novo e de novo?

Há argumentos dos dois lados, centrados na questão da humanização.

Quando a imagem surgiu, sem nome nem história, ela era a desumanização completa. Mais um corpo jogado na praia, como os do caminhão frigorífico. Mais um número, mais uma foto para apelar à emoção do público, que logo após se chocar poderia compartilhá-la em uma rede social e voltar a seus afazeres.

Mas isso foi feito com tamanha profusão e velocidade que a foto em si virou uma notícia, e, no decorrer do dia, bons jornalistas correram atrás da história do menino e de sua família. Ela, aliás, ainda está vindo à tona.

O corpo ganhou um nome, uma vida. E a crise dos refugiados, há tantas semanas nos jornais do mundo, ganhou um rosto. E políticos agiram. A Comissão Europeia, órgão executivo da União Europeia, acelerou um arrastado processo decisório e pediu que os países do bloco tomem medidas para acolher 100 mil refugiados.

Não é suficiente, claro, já chegaram mais de 300 mil neste ano (segundo a ONU) e o fluxo não para de crescer. Mas é significativo.

Laszlo Balogh/Reuters
Migrants gesture as they stand in the main Eastern Railway station in Budapest, Hungary, September 1, 2015. Hungary closed Budapest's main Eastern Railway station on Tuesday morning with no trains departing or arriving until further notice, a spokesman for state railway company MAV said. There are hundreds of migrants waiting at the station. People have been told to leave the station and police have lined up at the main entrance, national news agency MTI reported. REUTERS/Laszlo Balogh ORG XMIT: CVI1996
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DECISÕES

Com a história de Aylan conhecida, era preciso decidir sobre a divulgação da imagem de seu corpo devolvido pelas ondas, na areia (e não no colo de um policial turco, resgatado, como também foi fotografado).

Ainda se tratava de exposição do menino morto, mas agora o conhecíamos. E havia algo maior.

Ativistas humanitários, membros de organizações de direitos humanos, advogados especializados em direito da criança, defensores públicos e jornalistas foram quase unânimes em dizer que a foto precisava ser publicada. Mas a resposta não veio sem dilemas nem sem a sombra de exploração emocional.

Ao fim, como no resto da imprensa local e estrangeira, a maioria concluiu que era algo incontornável; que todos nós, de alguma forma, acabaríamos expostos à imagem, e que o melhor a fazer era contextualizá-la e resgatar a humanidade de Aylan e de todos os refugiados ao máximo.

É cedo para dizer que seu corpo na praia seja o símbolo desta crise global de refugiados -porque não há continente que passe incólume a ela. É precária a comparação com a foto de Phan Thi Kim Phúc, a menina que corre nua queimada por napalm que cristalizou os horrores da Guerra do Vietnã (1955-75).

Mas a imagem é, certamente, uma metáfora cruel, e por isso inescapável. Humanidade, falhamos. Morremos na praia, e por muito pouco.


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