Folha de S. Paulo


Ratos salvam vidas farejando minas terrestres em Angola e Moçambique

Focinho atento, ele para e arranha o solo por quatro segundos. É o sinal: ali, há resquícios de explosivos. Pode ser uma mina terrestre, restos de munição ou uma bomba aérea não detonada —de toda forma, um achado potencialmente perigoso.

O trabalho bem feito é recompensado com carinho e pedacinhos de banana ou amendoim.

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Associados geralmente à sujeira, ratos são utilizados há mais de 15 anos pela ONG Apopo (Anti-Persoonsmijnen Ontmijnende Product Ontwikkeling, em holandês, ou Detecção e Desenvolvimento de Produtos Antiminas Terrestres) para a detecção de minas terrestres.

A ideia veio em meados de 1990, quando o belga Bart Weetjens leu um estudo sobre como gerbilos (pequenos roedores do deserto) eram capazes de distinguir odores de explosivos em laboratórios. Lembrando dos ratinhos que tinha de estimação na infância (e de seu olfato apurado), Weetjens logo pensou que os roedores poderiam ser grandes aliados para a desminagem de territórios, algo essencial para o desenvolvimento econômico e social de muitos países subsaarianos.

Após consultar Ron Vernagen, professor da Universidade da Antuérpia (Bélgica), os dois chegaram à conclusão de que a melhor espécie para a tarefa era o Cricetomys gambianus (também conhecido como rato gigante da Gâmbia), por sua longevidade e capacidade de adaptação às condições ambientais da região. Em 1998, a Apopo estava criada.

MINAS TERRESTRES

Resquícios de guerras civis das últimas décadas, minas terrestres, bombas de fragmentação e outros explosivos ainda são uma triste realidade em todo o mundo, mas principalmente em países da África. Estima-se que 56 nações tenham hoje parte de seu território minado.

Segundo a Landmine and Cluster Munition Monitor, em relatório publicado em novembro de 2014, 3.308 pessoas morreram devido a essas armas em 2013. É um número subestimado, já que muitos casos não são reportados.

A maioria das vítimas conhecidas era civis (79%) e, dos civis, 46% eram crianças. O número de feridos no mesmo período é de ao menos 226 mil.

Em 1997, foi assinada uma convenção internacional em que 122 nações se comprometeram a não usar, estocar, produzir ou transferir minas terrestres. De lá para cá, o número de signatários subiu para 162. No entanto, muitos países —incluindo potências militares— ainda rejeitam o acordo, como Estados Unidos, Rússia, Israel, Arábia Saudita, China, Índia, Paquistão, entre outros.

Mesmo hoje, segundo a LCMM, há indícios de que minas terrestres estejam sendo usadas por alguns governos para evitar o avanço de forças rebeldes, caso da Síria e de Mianmar (não signatários do acordo de 1997).

Ainda assim, houve avanços. De acordo com a LCMM, 185 quilômetros quadrados em todo o mundo foram desminados em 2013, tendo sido desarmadas e destruídas mais de 270 mil minas antipessoais e 4.400 antiveículos.

BICHO DE ESTIMAÇÃO

Hoje, a Apopo atua em Angola, Moçambique, Tanzânia e Camboja, tendo também concluído projetos em Laos e Vietnã. O berçário e centro de treinamento da ONG fica em Morogoro (Tanzânia) na Universidade de Agricultura Sokoine. É lá que os ratos aprendem a detectar e a sinalizar a presença de TNT (trinitrotolueno) no solo.

Cada rato tem capacidade para esquadrinhar 200 metros quadrados em 20 minutos —o trabalho, se feito por um homem, pode levar um dia inteiro para apenas 50 m2. Apesar disso, quando em campo, cada roedor geralmente só examina 400 m2, para que não fique cansado.

De acordo James Pursey, porta-voz da organização, o bem-estar dos roedores é uma prioridade e todos são mantidos como animais de estimação. Os ratos recebem carinho de seus cuidadores, têm sua saúde monitorada e são alimentados de forma balanceada. Também podem brincar uns com os outros, ainda que se evite deixar dois machos juntos, pelo perigo de brigas.

Países com atuação da Apopo

Além de ter direito a descanso após treinamento ou jornadas de trabalho (que ocorrem de segunda a sexta-feira), os roedores são aposentados e mantidos pela ONG quando não podem mais atuar, entre os sete e oito anos de idade. O custo mensal para manter cada um deles é de cerca de 5 euros (R$ 20).

De acordo com a Apopo, a maioria de seus animais morre de velhice —não há registro de nenhuma baixa durante o trabalho de detecção de minas. Uma das razões é que esses explosivos geralmente só são acionados ao serem pressionados por mais de cinco quilos. Como o peso máximo do Cricetomys gambianus não chega a tanto (o mais pesado que a Apopo já teve tinha1,5kg), o acionamento não acontece.

EXPERIÊNCIAS LOCAIS

A Apopo está em Angola desde 2012 e, desde então, já "limpou" mais de 190 mil metros quadrados na província de Malanje, principalmente nos vilarejos de Kamatende e de Ngola Nuige. Atualmente, a equipe de "herorats" (ratos heróis, como são chamados pela ONG e seus apoiadores) no país conta com 38 animais —32 já certificados pelas autoridades locais.

Segundo Francisco Gregorio, 46, que chefia o braço local da ONG, é impossível fornecer uma estimativa confiável de quantas minas ainda restam no território angolano, já que diferentes grupos esconderam essas armas no solo durante a guerra civil (1975-2002).

Apesar da eficiência dos ratos, eles não trabalham sozinhos. De acordo com Gregorio, o trabalho de desminagem alia diferentes metodologias: manual, mecânica e animal (cachorros ou ratos). Em Angola, a Apopo tem parceria com a ONG Norwegian People´s Aid (Ajuda Popular da Noruega), que realiza a desminagem mecânica e manual após a detecção feita pelas roedores.

Já em Moçambique, o mesmo trabalho é feito há oito anos. A Apopo espera que, ainda em 2015, o país possa se declarar livre de minas terrestres. A última área a ser limpa, segundo a ONG, é o parque ecológico de Malhazine, que funcionou no passado para a estocagem de munição.

Durante todo o tempo em que esteve em Moçambique, a Apopo acredita ter "limpado" 11 quilômetros quadrados com seus ratos. Este número pode parecer pequeno, mas significou o alívio para 290 mil famílias que viviam na área, que se viram livres de mais de 13 mil minas, mil UXOs (unexploded ordnances, munições não detonadas) e 155 pylons (espécie de torpedo). Hoje, 20 ratos trabalham no país.

TUBERCULOSE

Nos últimos anos, a Apopo também começou a treinar seus ratos para a detecção de tuberculose, considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) uma das principais doenças infecciosas causadoras de mortes pelo mundo, ainda que curável. Estima-se que 1,5 milhão de pessoas tenham morrido pela doença em 2013, 360 mil dos quais eram portadores de HIV.

Assim como na detecção de minas, os roedores são extremamente ágeis, podendo farejar cerca de cem amostras para a detecção da bactéria em apenas 20 minutos. O mesmo trabalho se feito convencionalmente, por análise microscópica, pode levar até quatro dias. Toda amostra sinalizada pelos Herorats como contaminada é depois confirmada em laboratório.

Até o momento, cerca de 40 roedores já foram treinados para a tarefa, feita em laboratórios da Apopo em Moçambique e na Tanzânia. Atualmente, a ONG busca o endosso da OMS para esse trabalho de detecção.


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