Folha de S. Paulo


Sete décadas depois da bomba, Japão tenta curar as feridas de Hiroshima

Hiroshima

Passaram-se sete décadas, mas o tempo ainda não foi suficiente para curar as feridas deixadas pela primeira bomba atômica, detonada em Hiroshima, no Japão, às 8h15 do dia 6 de agosto, uma segunda-feira quente de verão.

"Para garantir que tal sofrimento nuclear nunca ocorra novamente, apelamos não só para o desarmamento, mas para a abolição das armas nucleares", não cansa de repetir Nobuo Miyake, 86, sobrevivente do bombardeio norte-americano.

Naquele dia, Miyake, então com 16 anos, andava de bonde.

Estava a menos de dois quilômetros de distância do hipocentro –o ponto em terra exatamente abaixo da detonação– quando o ataque ocorreu, e só sobreviveu porque decidiu instantaneamente saltar do veículo.

Desde 1980, ele percorre o mundo contando aquilo que define como "inferno na Terra". "Se uma guerra nuclear acontecesse em qualquer lugar hoje, não haveria inimigo ou aliado; o mundo inteiro iria sofrer, e isso levaria à extinção da humanidade", diz o japonês.

Ele passou três meses no navio da ONG Peace Boat, que desde 2008 organiza o projeto "Viagem por um mundo sem arma nuclear".

"Já levamos mais de 150 sobreviventes de Hiroshima e de Nagasaki [onde explodiu a segunda bomba atômica americana, três dias depois] a várias partes do mundo para darem testemunhos e pedirem a abolição nuclear", disse à Folha o diretor do projeto, Akira Kawasaki.

"A idade média dos sobreviventes chegou a 80 anos, então, o tempo que resta para eles enviarem essas mensagens urgentes em primeira mão é muito curto", lembra.

Por isso, as histórias de sobreviventes já são consideradas relíquias por entidades e autoridades do Japão, que tentam manter esse conhecimento de quem vivenciou a guerra incólume ao tempo.

ESTIGMA

Do pouco mais de um milhão de japoneses classificados como "hibakusha", ou "pessoa afetada pela explosão", cerca de 183 mil estão vivos.

A grande maioria tem mais de 80 anos e luta contra doenças e lesões causadas pelo efeito da bomba de sete décadas atrás.

Por anos os "hibakusha" foram discriminados pelos próprios japoneses, que temiam ser contaminados. Por isso, muitos enterraram suas memórias e se calaram por décadas, escondendo os detalhes do pós-ataque até mesmo da família.

Uma pesquisa do jornal "Asahi" mostrou que 76% dos entrevistados afirmam que a história contada diretamente por esses sobreviventes pode ajudar as gerações mais novas a conter o armamento nuclear.

Desde 2010, a publicação mantém um site com depoimentos.

Em 2011, a empresa jornalística colocou no ar a versão em inglês, com o objetivo de divulgar para o mundo todo as tristes histórias.

"Ao compartilhar essas mensagens, esperamos que elas contribuam para a compreensão da realidade que os sobreviventes da bomba atômica ainda enfrentam e para os apelos pela abolição de todas as armas nucleares", diz o site.

CONSTITUIÇÃO PACIFISTA

O apelo, entretanto, contradiz as recentes manobras do governo do premiê Shinzo Abe, que conseguiu a aprovação pela câmara baixa do Parlamento de uma mudança na Constituição pacifista do Japão.

Corrida nuclear

Desde o fim da Segunda Guerra (1939-45), o país estava proibido de participar de ações militares. Mas o premiê defende uma posição mais ousada na área da segurança frente ao crescente poderio militar chinês e às ameaças norte-coreanas.

Para Satoshi Hirose, pesquisador e vice-diretor do Centro de Pesquisas para a Abolição das Armas Nucleares (Recna) da Universidade de Nagasaki, muita gente vê o risco atômico como algo do passado ou restrito a Hiroshima e Nagasaki.

"Mas a ameaça de armas nucleares é um perigo claro e presente para todos os seres humanos", diz.

Por isso, o centro se dedica a promover o desarmamento nuclear e a estudar maneiras de acabar com todas as armas nucleares.

"Estamos muito interessados no processo em que o Brasil e a Argentina transformaram sua rivalidade nuclear em cooperação mútua. Acreditamos que pode ser um dos modelos para o Japão para melhorar sua relação com a China e a Coreia do Norte", diz Hirose, aludindo à Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), criada em 1991.

Segundo a instituição, há hoje 15.700 armas nucleares no mundo. A maioria pertence à Rússia (7.500) ou aos EUA (7.200), seguidos por França (300) e China (250).

PROJETO MANHATTAN

Concebida em julho de 1945, a bomba atômica dos EUA levou três anos de pesquisa e consumiu cerca de US$ 2 bilhões.

Como parte do Projeto Manhattan, o programa militar secreto dos EUA, a bomba tinha o objetivo de colocar um fim à Segunda Guerra e mostrar o poderio armamentista norte-americano contra a então potência que se tornaria sua arqui-inimiga, a União Soviética.

Apesar da vitória sobre os alemães em maio de 1945, a guerra no Pacífico continuou por dois meses.

O então presidente americano, Harry S. Truman (1884-1972), decidiu utilizar a arma para evitar uma invasão ao Japão, o que causaria, segundo estimativas, a morte de mais de um milhão de pessoas.

Em 6 de agosto de 1945, um bombardeiro B-29, apelidado de Enola Gay, despejou a bomba de urânio, ironicamente apelidada de Little Boy, ou "garotinho", no centro de Hiroshima. O artefato explodiu a 580 metros de altura.

Formou-se então uma bola de fogo que atingiu uma área de cerca de 230 metros de raio.

Estima-se que mais de 160 mil pessoas tenham morrido por causa do bombardeio de Hiroshima, sendo cerca de 70 mil no mesmo dia.

Pelo menos outras 40 mil morreriam três dias depois, em 9 de agosto, com o ataque a Nagasaki.

Dezenas de milhares de japoneses ficaram feridos ou sofreram danos emocionais profundos.

Em 2 de setembro, o Japão assinou a rendição, pondo fim à guerra.


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