Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Para fazer filme, foi preciso resgatar humanidade de Jean Charles

Quando comecei a pesquisar a vida de Jean Charles de Menezes, em 2007, me vi diante de um caso típico de desumanização. Para acobertar seus erros, a polícia londrina havia feito uma campanha para culpar o brasileiro, vítima de um assassinato, por sua própria morte.

A cobertura na mídia também havia, talvez sem intenção, desumanizado Jean. Repete-se tantas vezes a mesma história, com as mesmas palavras, que o consumidor de notícias fica anestesiado.

O trabalho de campo para o longa "Jean Charles" (2009) foi uma das experiências mais ricas da minha vida.

arte

Conversei com os parentes de Jean tentando ouvir não "fatos" nem "aspas", talvez pela primeira vez. Eu havia feito carreira no jornalismo. Tinha coberto o caso. Mas agora tinha o desafio de construir personagens de ficção –Jean Charles, o principal– a partir desses depoimentos.

Isso requereria uma compreensão de quem eram essas pessoas por dentro e o que a trajetória (e a morte) de Jean representava em suas vidas.

Compreendi e me comovi com a tristeza deles. Compartilhei daquela raiva.

Na minha primeira visita a Gonzaga (MG), onde Jean nasceu, o esforço foi grande para manter a compostura.

Dona Maria e seu Matozinho, os pais, viviam em um sítio nos arredores da cidade. Receberam-nos com gentileza. Controlei-me durante a conversa toda. Desaguei rios ao me achar sozinho, tocado pela dor sincera daquele casal que perdera o filho.

Ao longo do processo de escrita do roteiro, a quatro mãos com o diretor Henrique Goldman, sabíamos que o desfecho seria emocionante –embora não surpreendente. Nosso protagonista morria no final. Isso era inescapável: o espectador já entraria no cinema sabendo disso.

O que importava, portanto, era mostrá-lo em vida: surpreender e emocionar ao (re)humanizar a pessoa.

Após escrever e rescrever o longa, porém, parecia faltar algo. As filmagens começaram e eu carregava um incômodo difícil de racionalizar.

Uma tarde, na segunda semana de filmagens, entrei em casa e vi uma caixa de "cheese twists" –um salgadinho de queijo comum na Inglaterra. Veio o estalo: faltava "cheese" (dramalhão, no jargão em inglês do cinema) no "twist" (a reviravolta).

Voltei ao roteiro, no ponto em que Jean Charles estava na lama: brigara com o chefe, alienara os amigos, rompera com o primo. Queimara todas as pontes.

Pensei: nada aqui seria mais "cheesy" (e verdadeiro) do que um telefonema para a mãe, em Gonzaga. Para buscar colo. Dizer que está tudo bem, quando de fato nada vai bem. Quem morou fora do Brasil já passou por isso.

Filmamos a cena numa cabine telefônica, sem nunca tê-la escrito. Sem orçamento nem ensaio. Saiu pronta, com Selton Mello (que interpretou Jean Charles) achando o tom na hora, no improviso.

Foi um choro sincero: a solidão de um cara que amava estar cercado de gente. Uma cena cheesy, manipulativa. Mas que funcionava.

Meses depois, a prova: viajamos a Belo Horizonte para exibir a versão final à mãe de Jean Charles. A uma semana da estreia, queríamos sua bênção. Como ela reagiria à imagem que criamos do filho? Reconheceria ou rejeitaria? Não queríamos causar dor a alguém que já tanto sofrera.

Na sala escura, ouvimos seu choro contido. E o alívio: ela nos abraçou, agradeceu e mostrou espanto com as semelhanças entre o personagem e seu filho. Havíamos, de alguma forma, resgatado a humanidade do Jean.

O jornalista MARCELO STAROBINAS é coautor do roteiro de "Jean Charles".


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