Folha de S. Paulo


Vinte anos depois, Bósnia enterra vítimas de massacre que matou 8.000

Vinte anos após o massacre de 8.000 homens e meninos muçulmanos em Srebrenica (Bósnia) por tropas nacionalistas sérvio-bósnias, as desavenças em torno do caso ganharam novos contornos, expondo as feridas da região.

O episódio, considerado a maior atrocidade em solo europeu desde a Segunda Guerra (1939-45), tornou-se símbolo das falhas das operações de paz da ONU nos anos 90 e entrou para a lista de eventos sombrios da história recente.

Nos Bálcãs, seu significado é ainda alvo de disputas, e nesta semana o embate de versões migrou para o Conselho de Segurança da ONU.

Órgãos políticos pelo mundo, como Parlamento Europeu e a Câmara americana, aproveitaram a proximidade do aniversário do massacre para adotar resoluções reconhecendo-o como genocídio.

No Conselho de Segurança da ONU, no entanto, a resolução apresentada pelo Reino Unido recebeu o veto da Rússia sob apoio explícito da Sérvia e dos líderes sérvios da Bósnia, que enviaram cartas ao órgão argumentando que o termo "genocídio" agravaria a tensão na região.

A decisão russa foi recebida por bósnios muçulmanos como uma "nova humilhação". Na quinta (9), o premiê sérvio, Aleksandar Vucic, confirmou presença na cerimônia anual em homenagem aos mortos, neste sábado, apesar de diversas figuras locais terem pedido a ele que comparecesse apenas se fosse reconhecido o genocídio.

Além de Vucic, outras 50 mil pessoas são esperadas, incluindo Bill Clinton, presidente americano na época.

REVELAÇÕES

Clinton e representantes das grandes potências ocidentais estarão sob pressão após a revelação, nos últimos dias, de documentos que comprovam que a comunidade internacional sabia da ofensiva contra Srebrenica seis semanas antes, mas não agiu para evitar o massacre.

No livro "O Sangue da Realpolitik. O caso Srebrenica" (tradução livre, ainda não disponível em português), lançado esta semana, a jornalista Florence Hartmann, com base em documentos inéditos, demonstra como Srebrenica foi "sacrificada" por Reino Unido, EUA e França em troca de um acordo que colocasse fim à guerra.

Na época, Srebrenica era um enclave muçulmano numa área ocupada por forças sérvio-bósnias e designada "área segura", protegida pelos capacetes azuis da ONU.

"Eles decidiram simplificar a situação e abandonar o enclave, pois era fundamental para um acordo de paz. Preferiram não pensar no que iria acontecer com as pessoas, mesmo sabendo dos abusos ocorridos nos últimos anos", disse Hartmann, de Sarajevo, à Folha.

"A comunidade internacional falhou duas vezes em Srebrenica: ao não prevenir o genocídio e, mais recentemente, ao não garantir as condições necessárias para que o genocídio seja reconhecido pelos seus perpetradores."

O livro afirma ainda que, após a entrada das forças de Ratko Mladic em Srebrenica, a ONU forneceu 30 mil litros de gasolina aos sérvio-bósnios para remover a população. O combustível, porém, foi usado para levar os mais de 8.000 homens aos campos de execução e espalhar seus corpos por valas secundárias para tentar esconder o crime.

CORPOS

Esta última operação foi tão bem executada que, 20 anos depois, restos mortais ainda estão sendo encontrados e identificados. Todo ano, um caminhão coberto pela bandeira bósnia sai de Visoko, no centro do país, rumo a Srebrenica, levando novos caixões. Por onde passa, é recebido com flores e comoção.

Editoria de Arte/Folhapress

Do norte do país, 8.000 pessoas caminharam 120 km em três dias, numa Marcha da Paz rumo a Srebrenica. Após se encontrarem com parentes de vítimas e representantes nacionais e internacionais, iniciam o que se tornou um dramático ritual anual. Neste ano, 136 vítimas recém-identificadas, 18 das quais menores de idade, serão enterradas ao lado de outras 6.241. Cerca de 1.200 pessoas ainda estão desaparecidas.

Antes com 40 mil habitantes, a cidade conta hoje apenas com 7.000. Por lá, costuma-se dizer que há hoje mais corpos do que moradores. E, enquanto os crimes não são reconhecidos, as famílias ficam presas ao passado, como explica Munira Subasic, presidente das Mães dos Enclaves de Srebrenica e Zepa:

"Precisamos de uma lei contra o negacionismo. Sabemos que nos Bálcãs somos minoria, como eram os judeus. Todos condenam o Holocausto, mas ainda poucos condenam o que aconteceu conosco, muçulmanos".


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