Folha de S. Paulo


China consome 10 milhões de cães por ano; carne é iguaria em festival

Era a noite anterior ao solstício de verão, e as mesas diante de uma barraca de comida em Yulin estavam preparadas para a festa anual: abóboras ao vapor, corriola sautée, pepinos esmagados e noodles de farinha de arroz.

No centro de cada mesa ficavam os dois pratos tradicionais mais essenciais à celebração: lichias frescas e travessas repletas de cachorro assado, temperado com gengibre, alho, cascas secas de laranja, folhas de louro e funcho.

É por esse último prato que Yulin se tornou notória, graças a um festival anual de carne de cachorro encerrado na segunda-feira (22) —e os moradores locais não aguentam mais ouvir falar a respeito, obrigado.

"Por que as pessoas sempre falam mal de Yulin?", disse Tang Chengfei, que se formou recentemente na universidade e estava sentado a uma das mesas. "Ninguém vê que os japoneses comem sashimi de sapos vivos?"

De fato, é a percepção de hipocrisia da parte dos críticos que parece mais irritar os moradores dessa movimentada cidade de 7 milhões de habitantes na província de Guangxi, na fronteira com o Vietnã, sul da China.

"Compreendo o ponto de vista alheio", disse Tang. "Muita gente sente uma conexão especial com cachorros. Mas crescemos comendo carne de cachorro. Para nós é normal."

Yulin, conhecida pela luxuriante vegetação subtropical, é o suposto local de nascimento da lendária beldade imperial Yang Guifei, e se tornou alvo de uma campanha cada vez mais intensa de defesa dos direitos dos animais, que faz com que seus moradores se sintam cada vez mais sitiados, e muitas vezes os coloca na defensiva.

Liderados por ativistas chineses e internacionais, os defensores dos animais apelaram às autoridades locais e ao público chinês pelo fim do consumo de carne de cachorro e de outras práticas que acompanham o mercado chinês de carne de cachorro, que em geral não é regulamentado.

Calcula-se que mais de 10.000 cachorros sejam servidos a cada ano na celebração do solstício de verão na cidade.

A carne de cachorro não é amplamente consumida na China, mas é parte há muito estabelecida da dieta do país, especialmente no extremo sul e norte.

Até 10 milhões de cachorros e 4 milhões de gatos são comidos a cada ano na China, de acordo com os grupos de defesa dos direitos dos animais.

Ao longo das últimas semanas, milhões de mensagens condenando essa tradição culinária tomaram a mídia social chinesa.

Protestos e vigílias organizados por defensores dos direitos animais foram realizados em todo o país durante o feriado de três dias no final de semana, e mais de 40 ativistas de todo o mundo viajaram a Yulin na semana passada para defender a causa, muitos pelo segundo ou terceiro ano consecutivo.

Os ativistas conquistaram uma grande vitória no ano passado quando o governo municipal de Yulin, diante de crescentes críticas, distanciou-se do festival ao declarar que não o patrocinava e que passaria a impor severa regulamentação quanto à segurança alimentar.

A despeito do rápido crescimento do movimento, porém, os defensores dos direitos dos animais dizem encontrar crescentes dificuldades para comunicar sua mensagem às pessoas que mais importam: os moradores de Yulin.

"O ambiente agora está muito mais hostil do que em qualquer momento do passado", disse Andrea Gung, norte-americana de ascendência taiwanesa que fundou o Duo Duo Animal Welfare Project, sediado na Califórnia, e voltou a visitar o festival este ano.

"Antes, os vendedores de carne de cachorro talvez cortassem uma fatia e a jogassem perto de você. Agora estão muito mais agressivos. A polícia à paisana teve de intervir para me proteger."

A condenação a Yulin contribuiu para uma mentalidade cada vez mais belicosa por aqui, com muita gente afirmando que a cidade está sendo alvo de destaque injustamente.

Os moradores locais dizem que a hipocrisia moral quanto a comer animais é um saco sem fundo. E quanto ao consumo de carne bovina quando vacas são consideradas sagradas na Índia, dizem, ou os cachorros na Coreia e os perus nos EUA?

O que torna o consumo de carne de cachorro diferente de comer carne de galinhas ou porcos, questionam?

"Sinto que os ativistas fariam melhor uso de seu tempo ao tratar de questões como a escassez mundial de água ou crianças sequestradas, em lugar de tornarem as coisas mais caóticas por aqui", disse Yu Ping, 48, morador de Yulin e professor de pré-escola.

Como muitos moradores, Yu insistiu que os cachorros consumidos na cidade são criados para isso, enquanto os grupos de defesa dos direitos animais afirmam que boa porcentagem da carne consumida vem de cachorros roubados ou de rua.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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