Folha de S. Paulo


Documentos de Jean Charles reforçam que morte poderia ter sido evitada

Ao ser morto por policiais no metrô de Londres há quase dez anos, o brasileiro Jean Charles de Menezes, 27, carregava uma carteira preta, contendo dois documentos de identificação, quatro cartões bancários, um santinho religioso e três fotos 3x4.

Ele portava ainda um relógio, um aparelho celular prateado da empresa T-Mobile, um talão de cheques e um estojo com três canetas.

Esse material foi recolhido e lacrado pela polícia no dia da morte de Jean, em 22 de julho de 2005. Desde então, os objetos jamais foram mostrados.

Os pertences foram devolvidos há cerca de três anos a Patrícia Armani da Silva, prima do brasileiro que morava com ele na época.

Na semana passada, Patrícia recebeu a reportagem da Folha em sua casa em Londres para falar dos dez anos da morte do primo e, pela primeira vez, revelou a existência do material.

Jean Charles morreu com sete tiros num vagão na estação de Stockwell após ser perseguido pela polícia, a Scotland Yard, que o confundiu com um suspeito de terrorismo procurado pelos atentados que haviam atingido o sistema de transporte público da cidade duas semanas antes.

Dez anos depois, é possível saber que ele carregava uma carteira de motorista do Brasil (com foto), que venceria em 1º de outubro 2009, além de um documento do governo britânico válido até o fim de julho de 2005, com número de registro e foto.

Dentro da carteira, da marca Reebok, havia um cartão com imagem da Basílica de Aparecida.

Patrícia manteve o material nos envelopes oficiais da polícia londrina, com o timbre de "evidência" e a data de 22 de julho de 2005, uma sexta-feira. "Eu tinha recebido dos advogados e guardado", diz.

Os envelopes registram a anotação à mão de que os pertences haviam sido recolhidos de um vagão na plataforma 2 da estação de Stockwell, no sentido norte, local exato da morte do brasileiro. Um dos envelopes menciona "homem morto".

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Os tiros contra Jean foram disparados pouco depois das 10h locais daquele dia.

As investigações apontaram na época que as autoridades descobriram na tarde daquele 22 de julho, por meio dos documentos da carteira e do telefone celular, que haviam errado o alvo e matado um brasileiro inocente.

O material reforça que tudo poderia ter sido diferente naquele dia: uma mera abordagem policial faria Jean apresentar seus documentos e desfazer qualquer confusão de identidade.

"Os documentos serviram para eles saberem só depois quem era o Jean, porque atiraram primeiro antes de perguntar. Era só abordá-lo, era muito fácil", diz Patrícia.

Até hoje, nenhum policial foi punido ou responsabilizado pelo crime, apesar de as autoridades, incluindo a Justiça britânica, terem reconhecido o erro da operação que matou o brasileiro.

Há duas semanas, Patrícia e advogados decidiram recorrer à Corte Europeia de Direitos Humanos em busca de punição para os culpados.

PERSEGUIÇÃO

Uma investigação sobre o caso mostrou, por exemplo, que os policiais tiveram várias oportunidades para abordar Jean Charles —um deles, à paisana, chegou a sentar a três cadeiras do brasileiro durante um trajeto de ônibus.

Trabalhando como eletricista em Londres, o brasileiro, nascido em Gonzaga (MG), foi seguido passo a passo desde que saiu de casa, até entrar num vagão do metrô, onde foi abordado e morto.

Leandro Colon/Folhapress
Embalagem lacrada pela polícia britânica com objeto do brasileiro Jean Charles, morto há dez anos
Embalagem lacrada pela polícia britânica com objeto do brasileiro Jean Charles, morto há dez anos

Em sua versão, a polícia alegou acreditar que Jean Charles fosse Osman Hussain, suspeito de tentar, sem sucesso, operar um ataque terrorista no dia anterior. O episódio estaria ligado ao ataque de 7 de julho daquele ano, que deixou 52 mortos em Londres.

Segundo a polícia, Hussain vivia no apartamento de número 21 da "Scotia Road", no bairro de Tulse Hill, em Londres. Jean morava no de número 17.

O acesso a ambos era por uma entrada em comum, o que teria levado os policiais a seguir o brasileiro como se fosse o verdadeiro suspeito. Este, na verdade, foi preso dias depois em Roma e condenado a uma pena mínima de 40 anos.

Em 2007, a Scotland Yard foi considerada culpada pela Justiça britânica pelos erros na operação que levou à morte de Jean e condenada a pagar uma multa de £ 175 mil. Teve ainda de negociar uma indenização com os pais do brasileiro. Em 2009, os dois lados chegaram a um acordo, segundo a mídia britânica, nos valores em torno de £ 100 mil, cerca de R$ 286 mil na época.


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