Folha de S. Paulo


Após imigração arriscada, minoria islâmica continua à deriva na Malásia

Para os refugiados que chegaram à Malásia, a vida pode estar melhor que a situação de marginalização brutal, miséria e perseguição em Mianmar da qual fugiram -mas não muito.

Os grupos de migrantes rohingyas que desembarcaram em Ampang, Malásia, no mês passado, desesperados e exaustos, vieram juntar-se a cerca de 75 mil rohingyas que chegaram à Malásia anos ou até décadas antes. A julgar pelas provações enfrentadas por seus precursores, não será fácil para os migrantes mais recentes se firmar no país ou conseguir ser reassentados em outro lugar.

Mauricio Lima - 3.jun.2015/The New York Times
Muçulmanos rohingya rezam em uma mesquita em Kuala Lumpur, na Malásia, para onde migraram
Muçulmanos rohingya rezam em uma mesquita em Kuala Lumpur, na Malásia, para onde migraram

"Éramos apátridas em nosso país. E, como refugiados, nos tornamos apátridas outra vez", disse Mohammed Noor, diretor gerente da Rohingya Vision TV, serviço noticioso online com sede em Kuala Lumpur, a capital da Malásia. "Hoje somos um povo à deriva, um povo que navega à deriva para todo lugar, sem esperança, sem documentos."

Em Ampang, na quarta-feira, orações e discursos marcaram o terceiro aniversário do derramamento de sangue em Mianmar que desencadeou o êxodo mais recente, mas, na discussão regional mais ampla sobre seu futuro, os próprios rohingyas são relegados à posição de meros espectadores sem voz.

Na Malásia, seu status de refugiados e migrantes não registrados os impede de mandar seus filhos às escolas públicas, de modo que muitos têm pouco ou nenhum acesso à educação. Eles são legalmente proibidos de trabalhar, mas a necessidade obriga a maioria dos homens a encontrar trabalho manual informal.

Mauricio Lima - 3.jun.2015/The New York Times
Rohingyas relembram massacre em Mianmar em 2012 que deu início à onda de imigração na Ásia
Rohingyas relembram massacre em Mianmar em 2012 que deu início à onda de imigração na Ásia

"Décadas de políticas públicas em Mianmar deixaram muitos rohingyas analfabetos e miseráveis, e é difícil mudar essa situação quando se é refugiado", disse o antropólogo Gerhard Hoffstaedter, da Universidade de Queensland, na Austrália, que estuda os rohingyas e outros grupos refugiados na Malásia.

Ecoando palavras de outros especialistas e de lideranças rohingyas na Malásia, Hoffstaedter disse que muitos dos problemas dos refugiados se originam parcialmente na própria sociedade rohingya.

Os rohingyas "não têm a organização e as redes complexas com que contam outros grupos de refugiados, mais bem-sucedidos", explicou. Os chins, outro grupo de migrantes de Mianmar, têm tido mais sucesso na criação de escolas e em conseguir ser reassentados em países terceiros, especialmente os Estados Unidos.

"Os rohingyas possuem uma capacidade espantosa de sofrer, mas têm muito poucas histórias de sucesso", comentou o antropólogo.

Mauricio Lima - 31.mai.2015/The New York Times
Os rohingya trabalham informalmente e não recebem educação na Malásia por não ter documentos
Os rohingya trabalham informalmente e não recebem educação na Malásia por não ter documentos

Mesmo assim, em comparação com as choças de bambu e os fétidos campos de detenção que eles deixaram para trás em Mianmar, a Malásia lhes oferece pelo menos um pouco de esperança e oportunidades, mesmo que isso não seja a recepção gentil, escolas, empregos decentes e reassentamento rápido pelos quais muitos ansiavam.

Os rohingyas conseguiram formar enclaves em vários bairros da periferia de Kuala Lumpur, a capital, vivendo em casas feitas de blocos de concreto e comprando alimentos em feiras ao ar livre. Aqui no distrito de Ampang, dezenas de milhares de rohingyas se comprimem em apartamentos e casas dilapidadas, frequentemente com várias famílias ocupando cada imóvel.

Muitos homens rohingyas encontram trabalho ocasional em construções ou em restaurantes baratos na cidade; algumas mulheres trabalham em lojas e barracas de feira. No bairro de Selayang, centenas de rohingyas vendem frutas e verduras em barracas de feiras, misturando-se a outros migrantes pobres, muitos dos quais também vindos de Mianmar.

Mauricio Lima - 30.mai.2015/The New York Times
Rohingya trabalham em mercado popular de Kuala Lumpur, na Malásia, onde conseguiram refúgio
Rohingya trabalham em mercado popular de Kuala Lumpur, na Malásia, onde conseguiram refúgio

"Não somos um povo rico, mas esta vida é melhor do que a que deixamos para trás", disse Mohammed Ayub, rohingya que vive na Malásia há três anos e tem uma alfaiataria em Taman Muda, na periferia de Kuala Lumpur. "O mais importante é que aqui temos alguma segurança. Não temos muita coisa, mas temos alguma segurança."

Muitos migrantes dizem que seu problema mais urgente é a espera longa e incerta para que o escritório em Kuala Lumpur da agência das Nações Unidas para os refugiados lhes conceda o status de refugiados, que lhes daria direito à preciosa carteira de identidade, vista por muitos como a melhor proteção contra a possibilidade de serem detidos ou abusados pelas autoridades e a polícia.

"É quase impossível conseguir a carteira da ONU", disse a rohingya Ambiya Kadahusan, de 21 anos. Ela encaminhou o pedido há quase um ano e ainda não recebeu resposta. "Sem a carteira, não temos segurança para sair em busca de trabalho, nem para sair para visitar amigos."

"A polícia vem perguntar: 'De onde você é? Você é trabalhadora do Bangladesh?' Às vezes é preciso pagar para ser solta."

AJUDA

Os rohingyas recém-chegados ao país frequentemente procuram a Sociedade Rohingya na Malásia, que lhes fornece documentos contendo seu nome, data de nascimento e local de origem. A sociedade também emite papéis semelhantes a documentos oficiais, como certidões de casamento e de divórcio, que os migrantes não conseguem obter do governo da Malásia.

Os imigrantes também procuram superar as dificuldades, erguendo escolas rudimentares, ajudando-se mutuamente a encontrar trabalho e participando de organizações que prestam serviços, dão orientações e proporcionam um senso de solidariedade.

"Os rohingyas estão ativamente usando estratégias de autoproteção comunitária", comentou Matthew Smith, diretor executivo da organização Fortify Rights, sediada em Bangcoc, que monitora as condições de vida dos refugiados na região. "O governo da Malásia não lhes dá proteção adequada, então eles vêm cada vez mais lançando mão de seus próprios recursos."

Esses recursos são limitados pela pobreza dos migrantes e pela carência extrema dos migrantes mais recentes.

O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados disse que dá apoio a 31 "centros de aprendizado" para crianças rohingyas em toda a Malásia e que há outras escolas que funcionam sem apoio da ONU.

Mas Abdul Ghani, presidente da Organização de Direitos Humanos dos Rohingyas Étnicos de Mianmar na Malásia, disse que apenas uma parcela pequena das crianças rohingyas na Malásia têm acesso à educação regular.

O acesso a atendimento médico é outro problema. "Procuro ajudar essa gente porque eu mesmo já sofri", disse Ismail Ahmad, praticante rohingya de medicina tradicional que deixou Mianmar em 2007 e afirmou ajudar cerca de 60 migrantes, muitos deles recém-chegados ao país.

"Mas temos pouco dinheiro para remédios e alimentos, então em muitos casos não há muito que possamos fazer."

Ahmad mostrou um cataplasma de ervas envoltas em um pano e amarrado em volta de um tijolo quente. Ele o usa para tratar a paralisia e cãibra dos migrantes depois de viagens marítimas longas.

"Alguns deles passaram dois ou três meses no porão do navio, e quando saem não conseguem mais andar. Este é o melhor tratamento que temos para lhes oferecer."

Tradução de CLARA ALLAIN


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