Folha de S. Paulo


Trabalho do Brasil na Segunda Guerra é ignorado, diz filho de pracinha

O ítalo-brasileiro Mario Pereira é filho do sargento Miguel Pereira (1918-2003), o único combatente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) a permanecer na Itália após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Pereira trabalha como zelador do Monumento Votivo Militar Brasileiro. A obra foi inaugurada em Pistóia (norte da Itália), pela embaixada do Brasil, em 1966, em substituição ao cemitério onde jaziam os soldados brasileiros que tombaram em combate.

Adriana Marcolini/Folhapress
Mario Pereira, filho de Miguel Pereira, único pracinha brasileiro a se estabelecer na Itália após a 2ª Guerra
Mario Pereira é filho do único pracinha brasileiro a se estabelecer na Itália após o fim Segunda Guerra

Os restos mortais dos pracinhas foram trasladados, em 1960, para o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro.

Pereira nasceu em Pistóia em 1959 e cresceu ouvindo as histórias do pai. Foram tantas que o menino se transformou em um adulto apaixonado por aqueles soldados que vieram de longe para combater pela liberdade na Itália. Leia abaixo seu depoimento à Folha.

*

Meu pai era operador de código Morse e sua função era operar o rádio que mantinha contato com o Brasil.

Ele participou de dois ataques ao Monte Castelo, atuou na tomada de Castelnuovo e na rendição germânica de Fornovo di Taro, na província de Parma. Quando a guerra acabou, foi designado pelo Exército para ser o guardião do cemitério dos soldados brasileiros mortos em combate, em Pistóia.

Meu pai conseguiu trazer para o campo santo oito corpos de pracinhas que encontrou nas buscas que fazia por toda a Itália a fim de recuperar aqueles que jaziam em outros cemitérios. A função que exercia depois da guerra deveria ser itinerante e se prolongar por dois anos, mas acabou se estendendo por toda a vida.

Na Itália ele se casou e formou uma família.

Quando eu era garoto, perguntava ao meu pai por que, na escola italiana, não se falava sobre a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na guerra. Eu indagava: "Pai, meus professores ensinam que os americanos e os ingleses libertaram a Itália. Você me conta que os brasileiros também ajudaram e aqui em Pistóia tem até um monumento; por que isso acontece?" Ele ficava indignado com essa omissão.

Na região de Montese, na província de Modena (norte da Itália), onde os brasileiros combateram, a participação da FEB é ensinada nas escolas. Faz parte da memória coletiva local. Em Iola di Montese, um povoado no município, existe até um museu dedicado à Segunda Guerra, com uma seção sobre a FEB. Mas fora daqui quase ninguém sabe. A história não é contada.

Percorro as escolas fazendo palestras sobre a participação do Brasil na guerra, mas não sou professor. Levo os alunos nos lugares onde foram travados os combates. Faço divulgação. É um trabalho voluntário. Tento acender os holofotes para esse capítulo esquecido da guerra.

Eu tinha uma loja de aparelhos eletrônicos, mas fechei. Meu pai dizia que tinha uma missão e depois que ele se foi me senti na tarefa de levá-la adiante.

Ele começou a fazer visitas às escolas após 1995, ou seja, mais de 50 anos depois do fim da guerra. Até então, havia aqui uma tentativa de esquecer tudo o que tivesse a ver com o conflito. Só passadas cinco décadas é que houve um interesse renovado com relação à guerra, talvez porque algumas feridas tivessem cicatrizado.

Os italianos ficam maravilhados quando descobrem que o Brasil combateu ao lado dos aliados, porque aqui o país só é associado à praia, ao futebol e ao Carnaval. A surpresa é grande.

Reprodução
Foto histórica do Museu da Aviação mostra pracinhas brasileiros (FEB) com prisioneiro alemão em Montese
Foto histórica do Museu da Aviação mostra pracinhas brasileiros com prisioneiro alemão em Montese

Em 2004 conheci um professor de Milão que veio passear nessas montanhas, viu uma bandeira brasileira e pensou: 'Ai, futebol, de novo!'. Mas então alguém lhe explicou que ela estava ali porque a FEB havia combatido na área. Hoje é um apaixonado por essa história.

Meu pai contava que havia uma grande interação entre os soldados da FEB e a população.

A FEB é lembrada em 45 lugares nessa região com estátuas e placas. Com exceção do Monumento Votivo em Pistóia e de outro que fica no sopé do Monte Castelo, construídos com recursos da embaixada, os demais foram oferecidos pela população local, em sinal de gratidão.

Ele não se conformava com o fato de que o Brasil, que participou da vitória sobre os nazistas, não fosse reconhecido por nada.

Isso foi uma ferida não apenas para meu pai, mas para todos os pracinhas. Quem lutou aqui, quem arriscou a própria vida, quem ficou ferido, não apenas fisicamente, mas também na mente e na alma, pelos horrores da guerra, não ficou nada satisfeito com os resultados.

Os sucessivos governos nunca deram a devida atenção. O Brasil já era um Estado soberano, mas foi tratado como uma colônia dos Estados Unidos. Pagou integralmente aos EUA a dívida por todo o material que usou na Itália. Cada bala disparada foi cobrada, e isso é uma grande injustiça.

O país teria direito a se sentar à mesa de negociações após o fim da guerra, mas foi ignorado.


Endereço da página: