Folha de S. Paulo


Para conter imigração, Europa deve mirar a Síria, diz comissário da ONU

Para tentar conter o fluxo de imigrantes que se lançam na perigosa travessia do Mediterrâneo rumo à Europa –que já deixou cerca de 1.800 mortos só neste ano–, o suíço Pierre Krähenbühl, comissário-geral da agência de assistência da ONU para refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês), sugere que líderes europeus concentrem esforços em reduzir a instabilidade no Oriente Médio.

Sírios fugindo da guerra em seu país representaram 36% dos 116 mil imigrantes que chegaram à Itália pelo mar em 2014 –o maior grupo, segundo a Organização Internacional para Migração (OIM).

"Esses elementos estão interligados, e acho que, da perspectiva europeia, precisa ser feito mais para ajudar a estabilizar o Oriente Médio, porque, no fim das contas, é uma questão de segurança [da Europa]", disse Krähenbühl à Folha em visita ao Brasil.

Francisco Stuckert/Folhapress
O comissário-geral da UNRWA, Pierre Krähenbühl, durante entrevista em Brasília
O comissário-geral da UNRWA, Pierre Krähenbühl, durante entrevista à Folha em Brasília

Ele diz haver registro de palestinos que tentam as rotas clandestinas para fugir da guerra na Síria e da violência do Estado Islâmico, que devastou o campo de Yarmouk, onde viviam 18 mil refugiados.

"Eu consigo pensar em poucas coisas mais trágicas do que sobreviver à ofensiva contra Yarmouk e se lançar ao Mediterrâneo."

Leia a entrevista abaixo.

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FOLHA - Recentemente, a situação dos refugiados palestinos no conflito sírio ganhou destaque na imprensa internacional com o avance do Estado Islâmico sobre o campo de Yarmouk. Quão vulneráveis estão os refugiados palestinos no país?

PIERRE KRÄHENBÜHL - É uma situação muito extrema. Eu não gostaria de fazer um ranking de sofrimento, mas o que torna a experiência dos refugiados palestinos tão profunda e dramática é exatamente o fato de já ser uma comunidade que já foi deslocada no passado.

Havia 560.000 refugiados palestinos no país antes da guerra, mais de 60% deles foram desalojados por conta dos confrontos. Então você tem uma outra geração de palestinos na Síria expostos ao drama do deslocamento.

Na Síria, eles tinham construído seus negócios, eram praticamente autossuficientes antes da guerra, tinham oportunidades sociais e econômicas bem similares às dos sírios. Agora, 95% deles são completamente dependentes da nossa ajuda, de doações de comida, de assistência médica.

Como está a situação em Yarmouk?

Antes da guerra, cerca de 160.000 refugiados viviam nesse campo no sul de Damasco, que fica junto às principais rodovias que ligam ao sul do país e está a poucos quilômetros do palácio presidencial. Por ser um local bastante estratégico, ele tem atraído grupos armados nos últimos dois anos e meio.

Em 1o. de abril, a entrada do Estado Islâmico no campo resultou em mais sofrimento e instabilidade para os refugiados. Entrar no campo hoje é impossível porque há muitos confrontos. Dos 18 mil que ainda estavam no campo, milhares deixaram o local para regiões ao redor, onde podemos assisti-los.

Quando visitei Yarmouk em março, no nosso centro de distribuição, pude ver as marcas nos rostos das pessoas que mostravam o sofrimento causado pelo conflito. Um homem caminhou em nossa direção e só teve forças para dizer "estou com fome". Uma grávida desmaiou na fila. Esse quadro me marcou ainda mais porque essa era uma comunidade conhecida entre os palestinos como um grupo que tinha tido sucesso econômico. Poucos precisavam antes da nossa ajuda.

O governo sírio deveria fazer mais pelos refugiados palestinos?

O governo sírio tem acolhido bem os palestinos desde 1948, e dado oportunidades a eles. Mas agora, na guerra, é evidente que o governo tem que agir mais para proteger os civis, não só os palestinos. O conflito sírio é um exemplo muito triste da falta de respeito às leis internacionais e à proteção de civis.

Há hoje um lugar seguro para os refugiados palestinos na região?

Temos registrados 5 milhões de refugiados, é duas vezes a população de Brasília. Em Gaza, onde há 1,2 milhão de refugiados, o ambiente é incrivelmente difícil, com o bloqueio [israelense] e os conflitos. Na Cisjordânia, com a expansão dos assentamentos há pouca perspectiva de crescimento. No Líbano, eles enfrentam exclusão e não são autorizados a trabalhar, e, na Síria, há a guerra.

Então, provavelmente, o lugar mais seguro para os refugiados palestinos hoje é a Jordânia, onde vivem 2 milhões deles. Não é uma vida fácil, mas é o ambiente mais estável.

O que o mundo subestima, no entanto, é o peso disso. Muitas pessoas pensam que a questão palestina é algo separado, que concerne apenas ao conflito com Israel. Mas são 5 milhões de pessoas numa situação muito instável, o que é um fator de risco para a região, que já tem uma situação complicada.

Risco de aumentar a violência?

Vou te dar um exemplo. Em Gaza, 65% dos 1,8 milhão de palestinos que vivem lá têm menos de 25 anos. É uma juventude muito bem educada, que frequentou as escolas da ONU ou outras, mas que não tem emprego, porque o bloqueio imposto por Israel não permite a importação e a exportação de produtos.

Então há 860.000 pessoas com educação que precisam de doações de comida. Essa é a estatística da vergonha. É uma ajuda extremamente constrangida.

E é claro que se você está nessa situação –não ter trabalho e liberdade de movimento, não poder cuidar da sua família, sua casa foi destruída na última ofensiva e ainda não foi reconstruída–, há um momento em que vai sentir raiva, se sentir frustrado. E a mistura de raiva e frustração aumenta os riscos de violência.

Esse ciclo tem que ser quebrado com ação política, senão a cada 6, 9, 12 meses, a região –e especificamente Gaza– vai enfrentar essa violência.

Diante da instabilidade na região, muitos sírios e até refugiados palestinos têm buscado as perigosas rotas clandestinas para cruzar o mar Mediterrâneo rumo à Europa. Como evitar uma tragédia maior?

Esses elementos [instabilidade no Oriente Médio e imigração pelo Mediterrâneo] estão interligados, e eu acho que, da perspectiva europeia, mais tem que ser feito para ajudar a estabilizar o Oriente Médio, porque, no fim das contas, é uma questão de segurança.

Os conflitos na região criam fluxos de pessoas e a única forma de acabar com isso é trabalhando politicamente para criar estabilidade em seus países de origem, porque minha experiência me diz que a maioria das pessoas prefere viver em seus próprios países.

Sabemos que pessoas que sobreviveram a Yarmouk entraram nessas rotas, e eu consigo pensar em poucas coisas mais trágicas do que sobreviver a Yarmouk e se lançar ao Mediterrâneo.

Como o Sr. avalia a resposta europeia para a crise no Mediterrâneo?

É claro que entendemos que, para a Europa, é um grande desafio a quantidade de pessoas que têm chegado ao continente, mas vou usar um exemplo: o Líbano tem a metade da população do meu país, a Suíça (4 milhões e 8 milhões, respectivamente).

No Líbano, atualmente, há cerca de 1,5 milhão de refugiados sírios. Isso seria o equivalente a 3 milhões de refugiados na Suíça. Nós temos debates nacionais muito agitados –para não dizer histéricos– quando temos que receber 300, 400, 1.000 refugiados. Então consideramos muito normal para os países da região receber milhões de pessoas, mas na Europa é muito difícil ter uma política para dividir quantas pessoas receber. Diante disso, essas pessoas têm que se lançar a essas rotas perigosas, porque não há uma forma organizada de chegar até lá.

Você fala em trabalhar de forma política no Oriente Médio. Mas o Sr. vê vontade política nos principais atores para fazer avançar o diálogo de paz entre Israel e palestinos ou para resolver a questão síria?

Não vejo uma vontade muito forte no momento entre a maioria dos atores e isso me preocupa. Os palestinos estão sedentos por uma solução, mas têm suas próprias divisões e dificuldades.

É preciso de um esforço internacional maior: é preciso que a Europa se envolva, os países árabes, os EUA, Rússia, a China, o Brasil. Deveria haver uma mensagem para a região de que isso já foi longe demais, já criou muita instabilidade.

A UNRWA não é uma agência política, mas todos os dias vemos os custos da falta de uma resolução política. A situação é tão séria que não podemos nos dar ao luxo de sermos céticos.

Como o Brasil poderia ajudar no âmbito político?.

Acredito que o Brasil está tentando contribuir com um equilíbrio diferente nas relações internacionais, com uma ordem política internacional mais equilibrada. E faz isso nas suas escolhas em Nova York, na Assembleia Geral, mas não é fácil, porque há atores preexistentes que têm suas visões próprias. Mas acho que é uma perspectiva interessante. Não consigo imaginar a cena internacional, no futuro, sem um papel importante do Brasil.

Diante do cenário de instabilidade, o Sr. acredita que o Brasil seria uma boa opção para refugiados palestinos?

O Brasil tem um histórico de receber comunidades de libaneses e sírios. É importante que países que tenham os meios mostrem solidariedade, mas minha preferência para os refugiados palestinos é que se encontre uma solução na região. No entanto, é claro que se esses conflitos seguirem, a pressão se voltará sobre os países europeus e os latino-americanos, como o Brasil, para receber mais refugiados.

Como está a reconstrução de Gaza, quase um ano após a ofensiva israelense?

Durante a ofensiva, cerca de 100 mil casas foram totalmente ou parcialmente destruídas. Há cerca de 120 mil pessoas sem casa hoje, quase um ano depois.

Tivemos sucesso no conserto de algumas casas, que precisavam apenas de reparos menores. Conseguimos disponibilizar o dinheiro que veio da conferência para reconstrução no Cairo –cerca de US$ 100 milhões para permitir que 65 famílias deixassem os abrigos temporários.

Infelizmente, os fundos para isso acabaram no fim de janeiro. Tivemos que interromper um programa que estava dando certo, e isso foi muito decepcionante.

Além disso, nenhuma das cerca de 20 mil casas completamente destruídas foi reconstruída. Isso ocorre por várias razões: falta de recursos, porque a comunidade de doadores não se mobilizou de forma suficiente; falta de cooperação entre as partes palestinas; e os procedimentos burocráticos por parte de Israel.

Israel insiste que tem deixado passar materiais para a reconstrução.

Desde o fim do conflito, eles têm uma atitude um pouco mais aberta –então conseguimos trazer materiais, o que é uma boa notícia.

O que eles não permitem são os materiais que podem ser usados tanto para reconstrução como nos túneis [por onde entrariam armas para o Hamas]. O que eu pergunto para eles [israelenses] é se eles já acharam algum indício de que o cimento que entrou em Gaza foi usado na construção de túneis, e eles me disseram que não. Então é possível fazer grandes operações de reconstrução em Gaza sem ter o cimento indo para o lugar errado.

Durante a ofensiva de 2014, sua agência encontrou arsenais com foguetes do Hamas estocados em pelo menos três escolas da ONU. Para alguns críticos, esse é um sinal de possível cooperação com o Hamas. Qual a relação da UNRWA com o Hamas?

O que os críticos esquecem é que essas armas foram identificadas por nós, porque nós fazemos inspeções regulares exatamente para evitar que as escolas sejam usadas para isso. E, quando descobrimos, não escondemos nada e ainda condenamos publicamente.

Sobre nossa relação, nós temos operações de larga escala em Gaza e o Hamas é um ator importante lá. Quando você trabalha como uma agência humanitária e tem 20.000 funcionários em Gaza, é claro que precisa assegurar momentos de diálogo sobre sua segurança, sobre o que está fazendo. Isso não significa que tenhamos nenhuma opinião sobre o Hamas, ou uma relação particular.


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