Folha de S. Paulo


Regime norte-coreano usa maratona de Pyongyang para atrair estrangeiros

Às 8h30 de um domingo recente, os 50 mil lugares do estádio Kim Il-sung estavam quase lotados de homens trajando ternos ao estilo de Mao, gravatas e casacos, mulheres de vestido e salto alto e soldados de chapéu verde-oliva com abas largas.

Estudantes carregavam megafones de papel e algo como castanholas prateadas de madeira que brilhavam como bandeirolas de sinalização e ampliavam o som dos aplausos.

Eu estava na pista, no meio da névoa fria, com cerca de 650 corredores de 30 países vindos para desafiar ideias preconcebidas, além de pôr a resistência à prova.

Esperávamos a largada da maratona de Pyongyang, um momento breve de abertura em um dos países mais fechados e enigmáticos do mundo.

Pelo segundo ano estava sendo permitida a participação de corredores amadores estrangeiros nas provas de dez quilômetros, meia maratona e maratona completa em Pyongyang, a capital.

As corridas fizeram parte das comemorações do 15 de abril, o aniversário de Kim Il-sung, pai do ex-ditador Kim Jong-il e avô do atual mandatário, Kim Jong-un.

No estádio Kim Il-sung, o ambiente era de entusiasmo vibrante, embora ensaiado. Quase todo o mundo parecia tirar fotos da multidão, que era enorme, para o início de uma maratona que não fazia parte de uma Olimpíada.

Um sinal tocou, e funcionários de terno branco e chapéu vermelho nos fizeram assumir nossas posições na largada. Seus uniformes sugeriam algum tipo de experimento atlético e social.

O acesso de estrangeiros às provas tinha sido fechado abruptamente em fevereiro, por suposta ameaça da epidemia de ebola. Em março, sem explicações, a porta foi aberta outra vez.

Agências de turismo e guias coreanos propuseram explicações possíveis: a Coreia do Norte estaria precisando urgentemente das divisas do turismo.

O país estaria tentando gerar interesse popular por meio da recreação e usando o esporte para tentar reabilitar sua imagem de parte de um "eixo do mal".

"Muitos enxergam nosso país como 'desenvolvimento militar e povo pobre'", disse O Ryong-jong, funcionário do Ministério dos Esportes norte-coreano que atuou como guia. "Queremos que venham ver por si mesmos."

O especialista em Coreia do Norte Andrei Lankov, da Universidade Kookmin, de Seul, escreveu em "The Real North Korea: Life and Politics in the Failed Stalinist Utopia", que em 2013 Kim decidiu que o país deveria elevar o fluxo anual total de turistas estrangeiros de 200 mil para 1 milhão em três anos.

A Coreia do Norte constrói um novo terminal no aeroporto, convida estrangeiros para participar de eventos e tenta atrair turistas ricos com uma estação de esqui, possivelmente um reflexo dos anos que Kim Jong-un passou estudando na Suíça.

"Aparentemente", escreveu Lankov, "Kim espera transformar seu reino em uma Suíça asiática, um lugar para onde irão multidões de ocidentais ricos. Esse sonho é pouco realista, em vista da situação lamentável da infra-estrutura turística do país."

CORRIDA

Antes do início das provas, corredores norte-coreanos se misturaram brevemente com corredores estrangeiros. Alguns posaram para fotos, enquanto outros afastavam os olhos, tímidos.

Os estrangeiros começaram antes, usando seus trajes fluorescentes casuais, e os locais os seguiram uma hora depois.

Os mais velozes usavam camiseta regata e tênis de corrida; algumas das mulheres ostentavam fitas brancas na cintura. De acordo com uma estimativa generosa da mídia estatal, 800 norte-coreanos participariam da prova.

Outro guia no meu ônibus de turismo, Pak Un-gyong, tinha examinado cuidadosamente a roupa que usaríamos para correr.

Representações das bandeiras dos Estados Unidos, Coreia do Sul ou Japão eram proibidas, e os logotipos de fabricantes de roupas tinham que ser discretos.

Saímos do estádio e passamos pelo Arco do Triunfo, de 60 metros, símbolo da resistência à ocupação japonesa da península coreana entre 1910 e 1945.

Num trecho inicial em aclive, passamos por multidões modestas espalhadas por uma rua larga com damasqueiros em flor. Um soldado saudou alguns corredores com o gesto de "toca aqui".

Uma mulher acenou de uma janela. Outras, de casaco vermelho, serviam água em xícaras postas sobre mesinhas para hidratação.

O percurso de dez quilômetros nos levou a atravessar o rio Taedong por uma ponte e, na volta, passar por um túnel debaixo dele. As ruas estavam decoradas com bandeiras norte-coreanas. Não havia banheiros públicos.

Placas discretas apontavam para os sanitários perto do percurso. Um ficava no segundo andar de um prédio; outros, em uma loja de quinquilharias, um restaurante e um bar com karaokê.

"No ano passado tivemos um sujeito que foi a todos os banheiros, porque de outro modo não poderia entrar nesses lugares", contou Tori Cook, guia da Koryo Tours, agência britânica de Pequim que levou 270 estrangeiros para participar da prova.

Os corredores foram oficialmente proibidos de usar câmeras no percurso, mas a regra não parece ter sido implementada.

"O ambiente está mais solto, menos controlado", comentou Zahlen Titcomb, 32, de Seattle, que viajou a Pyongyang em 2011 para participar de uma competição de "ultimate frisbee".

Em alguns trechos os únicos sons ouvidos eram dos sinos de bicicletas que passavam ao lado, música marcial ou um helicóptero do qual desciam paraquedistas para entreter os espectadores no estádio Kim Il-sung.

Ao longo do percurso, as crianças vistas pareciam ficar mais ousadas. Trajando casacos de moletom ou os uniformes azuis e lenços vermelhos dos jovens pioneiros, elas trocavam cumprimentos com os corredores que passavam e muitas vezes gritavam "nice to meet you" (prazer em conhecê-lo) ou "welcome to Korea" (bem-vindo à Coreia).

Durante a meia maratona, o holandês Hank Mannen, 36, espantou-se ao ver uma moça lhe mandando um beijo. Ele disse que mandou um beijo de volta, mas depois pensou: "Agora ela vai ter problemas".

Terceiro na meia maratona para corredores amadores estrangeiros, Filippo Nicosia, 39, diplomata da embaixada da Itália em Pequim, conversou em coreano com estudantes mulheres.

"Isto é só uma abertura leve, não uma mudança estrutural", comentou o diplomata, que antes trabalhava em Seul. "É como quando a Filarmônica de Nova York veio ao país em 2008. Não muda nada, mas cria uma oportunidade para que a curiosidade se torne um sentimento amigável."

Tradução de CLARA ALLAIN


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