Folha de S. Paulo


Curadores preservam Auschwitz para manter memória real do Holocausto

Visitar Auschwitz é encontrar um lugar insondável mas estranhamente familiar. Depois de tantas fotos e filmes, livros e depoimentos pessoais, é tentador pensar no local não como a realidade, mas como um cenário cinematográfico para um campo de extermínio, fruto de uma imaginação grotesca.

Infelizmente, ele é a realidade.

É por nisso que, desde sua criação em 2009, a fundação que arrecada dinheiro para manter o campo de Auschwitz-Birkenau segue uma filosofia básica: "Preservar a autenticidade".

A ideia é manter o local intacto, exatamente como era quando os nazistas se retiraram diante do avanço das tropas soviéticas que libertaram o campo em janeiro de 1945, um evento ecoado pelo Dia Memorial do Holocausto, nesta quinta-feira (16).

É uma postura moral que acarreta desafios de curadoria específicos. Significa restaurar as edificações de tijolos deterioradas nas quais judeus e outros eram mantidos como prisioneiros, mas sem reconstrui-las, para que não assumam a aparência de uma réplica histórica.

Significa reforçar a pilha de destroços recobertos de musgo que servia como câmara de gás em Birkenau, o campo de extermínio a alguns quilômetros de distância, uma estrutura que os nazistas explodiram ao partir.

Significa proteger o campo contra a infiltração de água dos lagos vizinhos, onde as cinzas dos mortos foram despejadas.

E significa usar especialistas em conservação para preservar um acervo que inclui mais de uma tonelada de cabelos humanos, 110 mil pares de sapatos, 3.800 malas, 470 próteses e aparelhos ortopédicos, mais de 40 quilos de óculos, centenas de cartuchos vazios das cápsulas do veneno Zyklon-B, os dutos metálicos e chuveiros patenteados das câmaras de gás, 379 uniformes listrados, 246 xales de oração, mais de 12 mil panelas e frigideiras carregadas pelos judeus que acreditavam estar sendo relocados, e cerca de 225 metros de documentos da SS - registros higiênicos, telegramas, plantas arquitetônicas e outras provas da burocracia do genocídio -, bem como as memórias de milhares de sobreviventes.

O trabalho pode ser perturbador e doloroso, mas é comum que seja executado com grande senso de responsabilidade.

"Estamos fazendo alguma coisa contra a ideia inicial dos nazistas que construíram este campo", diz Anna Lopuska, 31, que comanda um plano de longo prazo para a conservação do local. "Eles não queriam que isso perdurasse. Nós faremos com que perdure".

A estratégia, ela diz, é a de "intervenção mínima". O ponto é preservar os objetos e edificações, mas não embelezá-los. A cada dia, com a morte de mais e mais sobreviventes, o trabalho se torna mais importante. "Dentro de 20 anos, só teremos esses objetos falando em nome do lugar", ela afirmou.

Os especialistas em conservação estão percorrendo um caminho que não é trilhado frequentemente na restauração. "Temos mais experiência em preservar uma catedral do que os restos de um campo de extermínio", disse Piotr Cywinski, 44, diretor do Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, que opera os campos. Auschwitz, ele disse, "é o último lugar em que ainda se pode avaliar de maneira efetiva a organização espacial da progressão do Shoah".

No ano passado, o recorde de 1,5 milhão de visitantes foi ao campo para fazer essa avaliação, mais de três vezes o número de visitas de 2001, o que coloca os desgastados edifícios sob pressão ainda maior.

O laboratório de preservação, que usa tecnologias de ponta, foi inaugurado em 2003. Na semana passada, Nel Jastrzebiowska, 37, especialista em restauração de papel, estava trabalhando com um apagador de borracha para limpar documentos contidos nos arquivos.

Eram cartas escritas no papel oficial de correspondência de Auschwitz, em alemão e com tom róseo, para escapar aos censores. "Estou bem de saúde", dizia uma dessas cartas. "Mande dinheiro".

Em uma mesa vizinha estava a partitura para a segunda trompa de "Capriccio Italien" (Op 45), de Tchaikovsky, uma das peças que a orquestra do campo de extermínio costumava tocar. Jastrzebiowska estava trabalhando para preservar a partitura como estava, disse, mantendo as marcas de dedos nos locais em que páginas eram viradas.

"Os objetos precisam mostrar sua história", disse Jolanta Banas-Maciaszczyk, 36, líder do departamento de preservação.

"Não podemos parar o tempo", disse Jastrzebiowska. "Mas podemos desacelerá-lo".

O marido dela, Andrzej Jastrzebiowski, 38, trabalha com conservação de metais. Passou três meses limpando todos os óculos expostos em uma vitrine, preservando seu estado precário mas tentando impedir que a corrosão avançasse ainda mais.

"Quando via os óculos em exposição, eu os via como uma grande pilha", ele disse. Mas no laboratório, começou a examiná-los um por um. Um deles tinha um parafuso substituído por uma agulha torcida; outro tinha uma haste consertada de improviso.

"E então aquela enorme massa de óculos começou a se transformar em pessoas", disse Jastrzebiowski. Essa "busca pelo indivíduo", ele afirmou, ajuda a garantir que o trabalho não se torne simples rotina.

Em 2009, a infame placa metálica que dizia "Arbeit Macht Frei", ou "o trabalho liberta", e pendia do portal de entrada foi roubada. Três dias mais tarde, ela foi encontrada em outro local da Polônia, cortada em três. (Um sueco conectado a grupos neonazistas e dois poloneses foram acusados do crime, posteriormente.)

Jastrzebiowski ajudou a soldar a placa de novo. Mas as cicatrizes da soldagem falavam mais do roubo da placa do que de sua longa história, e por isso o museu decidiu que seria mais autêntico substitui-la por uma réplica.

A equipe de conservação opera em clima de camaradagem, mas de vez em quando seu trabalho se torna insuportável. "Lidar com os sapatos talvez seja a parte mais difícil do trabalho aqui", disse Banas-Maciaszczyk.

Todo mundo tem momentos emotivos. Para ela, foi o dia em que teve de limpar o tamanco de madeira de uma menina pequena. Ela conseguia ver a marca do pezinho da menina no calçado. "É difícil descrever", afirmou Banas-Maciaszczyk. De 1940 a 1945, entre 150 mil e 200 mil crianças morreram em Auschwitz.

A restauradora disse que sua mãe a achava louca por trabalhar em Auschwitz. "Há momentos em que questiono o que estou fazendo aqui", ela admitiu. Mas em seguida ela pensa no quadro mais amplo. "Todo mundo que trabalha aqui precisa sentir a importância", diz Banas-Maciaszczyk. "Se não a sentíssemos, não haveria força no mundo que nos mantivesse aqui".

O museu decidiu que não preservaria uma coisa: a massa de cabelos humanos que ocupa uma vasta vitrine. Ao longo dos anos, os cabelos perderam suas cores e se tornaram grisalhos. Por respeito aos mortos, não se pode fotografá-los.

Diversos anos atrás, o Conselho Internacional de Auschwitz, que assessora o museu, passou por um debate agonizante sobre os cabelos. Alguns sugeriram sepultá-los. Outros desejavam preservá-los. Mas um assessor mencionou um aspecto importante: como saber se os donos originais dos cabelos estavam vivos ou mortos? Quem somos nós para determinar o que fazer com isso?

A decisão, portanto, foi de permitir que o cabelo decaia, sem preservação, na vitrine, até que se torne pó.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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