Folha de S. Paulo


'Rezamos ao Sol, não à cruz', afirma membro da minoria curda yazidi

"Rezamos ao Sol, e não à cruz", diz Vakil Usoyan, 59, apontando ao céu e, depois, descendo as mãos para tocar a própria testa e o peito. Assim tenta explicar a diferença entre sua fé, yazidi, e a cristã, dominante na Armênia.

Sua família chegou ao país em 1912, fugindo de perseguições religiosas em Karbala, no atual Iraque.

Ele conta essa história centenária enquanto serve à reportagem da Folha um prato de cordeiro ao vapor.

Alguns dias depois desse encontro, a milícia Estado Islâmico libertou 216 crianças e idosos yazidis após oito meses de cativeiro no Iraque.

"Matam aos nossos ali como porcos", afirma Usoyan. Ele acompanha as notícias num canal curdo na TV, um dos únicos bens na casa, que parece uma caverna. "Por que o mundo fecha os olhos?"

Os yazidis são uma minoria de 800 mil pessoas que vivem basicamente no Iraque. São etnicamente curdos, mas têm uma religião particular, surgida em torno do século 12, unindo elementos de outras fés, como o zoroatrismo.

Os detalhes de seus rituais são secretos e de certa maneira pouco compreendidos. As perseguições foram frequentes durante a história. Uma das razões é a ideia de que cultuam o demônio. "Dizem que somos adoradores do diabo", afirma Rafik Mirzoyan, 36, um dos convidados ao almoço da família.

Parte da crença yazidi diz que uma criatura chamada Melek Tawwus ("anjo pavão") recusou-se a reverenciar o homem, após a criação divina, e por isso foi punido. A história se assemelha ao cristianismo, mas yazidis acreditam que Melek Tawwus se arrependeu e foi redimido. Por isso é cultuado.

"Quem tem um desejo faz um pedido a Melek Tawwus e é respondido", afirma Usoyan, de olhos claros, dente de ouro e bigode.

MEMÓRIA

Há cerca de 40 mil yazidis na Armênia, em muitos vilarejos. A maior parte chegou à região no início do século 20.

Há pouco em comum entre os yazidis e a maioria armênia, que é parte de outro grupo étnico e falante de uma língua distinta, além de seguir a religião cristã.

Mas há um ponto de encontro: a memória. Ambos foram vítimas de perseguições nas últimas décadas do Império Otomano.

O governo armênio afirma que 1,5 milhão de armênios morreram naqueles anos. A Turquia nega, e o Brasil não reconhece os massacres como genocídio.

"Temos a mesma história", diz Usoyan. "Meu pai tinha 40 dias de vida quando minha avó escapou de Karbala. Sugeriram que ela o deixasse para fugir mais rápido, mas ela não aceitou."

Editoria de arte/Folhapress
Mapa Armênia

Talvez esse passado em comum facilite a vida na comunidade, sugerem os que estavam presentes ao almoço.

Eles contam que é difícil manter as tradições longe de sua terra, e os jovens têm dificuldade para explicar seus rituais. Ademais, durante a refeição, a família insiste: "Somos modernos".

"Temos roupas típicas, mas não usamos todos os dias. Nossas avós, sim, se vestiam tradicionalmente. Mas estamos no século 21", riem os homens à mesa.

As mulheres não participam do almoço com eles.

"Antes só podíamos casar com mulheres yazidis", afirma Romik Mierzoyan, 30, que mais tarde sugere que seu amigo Ahmad Hasoyan, 35, se case com a fotógrafa da Folha (que recusa).

"Hoje é tudo baseado no amor", afirma Mierzoyan.

Os jornalistas DIOGO BERCITO e CASSIANA DER HAROUTIOUNIAN viajaram a convite do Consulado da Armênia em São Paulo


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