Folha de S. Paulo


Milícias xiitas dizem não precisar dos EUA para derrotar Estado Islâmico

Perto do ponto zero da guerra pelo controle do Iraque, quase nada se move. Os insurgentes que fizeram deste lugar um dos mais perigosos do planeta se esconderam em casas semidestruídas, e os milicianos que os combatem estão se preparando para o que acreditam que será a batalha final, nos próximos dias.

As estradas que levam à linha de frente estão desertas; as comunidades que as margeiam, em ruínas. Pichações deixadas por militantes do Estado Islâmico foram cobertas pelos símbolos dos combatentes xiitas que agora estão na vanguarda do conflito, com suas bandeiras verdes e amarelas orgulhosamente declarando sua origem. Bandeiras do Iraque também são hasteadas aqui, mas em número menor.

Um drone circulava ao alto na quinta-feira, horas depois de a força aérea dos EUA participar do combate pela primeira vez desde que começou, este mês, a batalha pela cidade natal de Saddam Hussein. "Estava assim ontem", disse um sunita na cidade vizinha de Alam. "Então os aviões vieram, à noite."

Moradores locais dizem que durante a maior parte da noite de quarta-feira, jatos bombardearam uma área densamente povoada de Tikrit que se acredita ser o último reduto do EI, só parando um pouco antes do amanhecer.

Os ataques foram os primeiros lançados sobre a cidade pela coalizão liderada pelos EUA desde que a batalha começou. E provocaram reações de incômodo entre os líderes milicianos em campo que vêm negando constantemente ter recebido qualquer apoio dos EUA, mas mesmo assim parecem ter se beneficiado dele.

"Não pedimos ajuda deles e não temos contato direto com os americanos", disse Hadi al-Amiri, o líder geral dos grupos xiitas, falando em uma base na cidade de Samarra, 48 quilômetros ao sul de Tikrit. "Que eu saiba, o primeiro-ministro Haider al-Abadi fez o pedido. Mas respeitamos sua decisão."

Outros membros da Frente de Mobilização Popular, que reúne grupos de combatentes xiitas apoiados pelo Irã -todos os quais exerceram papéis de destaque durante a guerra civil iraquiana-foram muito menos circunspectos.

O grupo Asa'ib ahl al-Haq, um dos mais fortes da coalizão, deu a entender que pode se afastar dos outros membros, em protesto contra a aliança "de facto" com um inimigo.

"Anunciamos que vamos suspender nossas operações, porque não vamos aceitar que o governo iraquiano entregue a vitória aos americanos numa bandeja de ouro", disse um porta-voz do grupo, Naim al-Obaidi. "Não há necessidade dos ataques aéreos americanos agora, quando já libertamos 90% de Tikrit. Não vamos deixar os americanos ficarem com a glória pelo trabalho que estão fazendo de libertar 10%."

Outros grupos sugeriram que podem fazer o mesmo. Contudo, com a batalha por Tikrit aproximando-se da conclusão, líderes milicianos seniores se preparavam para uma segunda noite de ataques aéreos que podem realizar algo que um mês de combates nas ruas não conseguiu: desalojar até 750 combatentes fortemente armados do EI de uma paisagem urbana densa que já fez muitas vítimas entre os combatentes xiitas e é a principal razão pela qual os combates perderam um pouco de ímpeto.

O próprio Amiri viajou a Tikrit na quinta-feira para examinar o campo de batalha. Antes disso, disse que o futuro dos militantes ficará claro em breve. "Dentro de alguns dias saberemos quanto tempo esta batalha vai durar.

Em pouco tempo saberemos quais são as intenções deles", falou, aludindo aos estimados 500 a 750 combatentes do EI que defendem a cidade. "Pensei inicialmente que eles fugiriam, como outros, mas parece que os que permaneceram querem lutar até a morte. Fizeram o mesmo em Kobani."

A cidade curda síria de Kobani se rendeu finalmente à milícia YPG em janeiro, depois de uma batalha de quatro meses durante a qual as forças aéreas dos EUA e seus aliados árabes lançaram quase 700 investidas aéreas para desalojar o EI.

Durante décadas reduto da velha guarda iraquiana, nos últimos meses Tikrit tornou-se um dos principais centros sob controle do EI e dos remanescentes do partido Baath, hoje desarticulado, através do qual Saddam Hussein projetava seu poder.

A luta pela cidade tornou-se uma das batalhas mais importantes dos nove meses de guerra do Iraque contra o EI, durante os quais forças irregulares -apoiadas e dirigidas pelo Irã-em muitas ocasiões exerceram primazia sobre o Exército nacional iraquiano.

Forças xiitas que escoltaram o "Guardian" até Tikrit disseram ter exercido um papel dominante na captura de cidades ao longo da margem oriental do rio Tigre, que percorre a cidade.

Sua presença em toda parte destoou nitidamente da descrição feita pelo general Lloyd Austin, líder do Comando Central americano, que, horas após os ataques aéreos, disse ao comitê das forças armadas no Senado: "Não há milícias xiitas presentes no momento, e, como foi relatado pelos iraquianos hoje, tampouco há forças da FMP na área".

A Frente de Mobilização Popular permanece no controle firme da área, enquanto alguns moradores começavam a retornar, depois de passar meses como refugiados em seu próprio país. "Fomos a Kirkuk", disse uma família que retornou na quinta. "Estamos contentes por voltar para casa. Os meses passados aqui [sob o domínio do EI] foram os piores de nossas vidas."

Outra moradora que retornou, Sajda Jabour, estava com seus quatro filhos ao lado de um guichê de registro à beira da estrada. Ela disse: "Só agora estou começando a sentir que temos uma vida à qual voltar. Nossa casa foi saqueada, mas podemos nos virar. Pelo menos ela ainda está firme."

Sua família é uma das que teve sorte. Até metade das casas em Alam e Dour, na estrada para Tikrit, foram depredadas ou destruídas, em sua maioria pelas forças do EI em retirada, que se vingaram com uma política de terra arrasada. Combatentes xiitas foram responsáveis por alguns saques; na quinta-feira, milicianos uniformizados estavam saqueando lojas abertamente.

Amiri disse que suas forças, juntamente com o Exército iraquiano, expulsaram o EI de 4.400 quilômetros quadrados do Iraque central nos últimos meses, tendo sua ofensiva se concentrado ao longo do percurso dos rios Tigre e Eufrates. As estradas e comunidades próximas aos rios foram rotas estratégicas para o EI quando ele se aproximou de Bagdá no ano passado.

Ao longo do trajeto, as narrativas opostas dos dois grupos permanecem gravadas nos marcos que ainda estão em pé. Em uma grande castelo d'água na cidade de Dour, combatentes xiitas tinham substituído as palavras "Califado do Estado Islâmico" por uma ode a seu imã. Sua mensagem dizia "Califado do Imã Ali, o guia da profecia."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: