Folha de S. Paulo


Brasil recua e reduz projetos de cooperação e doações para a África

Falta de recursos e de interesse começam a desmontar a ofensiva comercial e diplomática do Brasil na África.

Após ganhar espaço e influência no continente durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que abriu 17 embaixadas e fez inúmeras viagens a países africanos, o país está recuando.

O orçamento dos programas de cooperação do governo brasileiro na África caiu 25% desde 2012, e vários projetos estão parados. A FGV tinha 60 projetos na África há três anos e agora tem dois.

Agência Vale/Divulgação
Mina de carvão da brasileira Vale em Moatize, em Moçambique, que está em funcionamento desde julho de 2011
Mina de carvão da brasileira Vale em Moatize, em Moçambique, que está em funcionamento desde 2011

A Vale encerrou atividades de exploração mineral em três países africanos e vendeu parte das operações em Moçambique à Mitsui, no fim do ano passado. A Petrobras devolveu cinco blocos de exploração nos últimos dois anos.

E as exportações brasileiras para a África (pico de US$ 12,22 bilhões em 2011), fecharam 2014 em US$ 9,70 bilhões, recuo de 20%. No mesmo período, as exportações totais do Brasil caíram 12%.

O Pró-Savana, um dos projetos mais emblemáticos, está em marcha lenta. A parceria de Japão, Brasil e Moçambique visa desenvolver a agricultura da região do corredor de Nacala (norte moçambicano), de características similares às do cerrado brasileiro.

Para isso, a Embrapa montaria um laboratório de solos e o Japão, outro. O laboratório dos japoneses está pronto. Já o de Lichinga, que teria seu custo de US$ 1,5 milhão financiado pelo Brasil, por meio da ABC (Agência Brasileira de Cooperação), está parado por falta de recursos, segundo apurou a Folha.

Editoria de Arte/Folhapress

"Há uma retração na política externa para a região, ao mesmo tempo em que as empresas brasileiras vivem situação econômica difícil, com preços de commodities em baixa", avalia Adriana Abdenur, professora da PUC-RJ.

"China, Índia e Turquia ganham espaço com o recuo do Brasil no continente", diz.

A execução orçamentária da ABC (montante efetivamente usado) caiu 25% –de R$ 36,9 milhões em 2012 para R$ 27,8 milhões em 2014. A agência tinha 253 projetos ou atividades na África em 2010. No ano passado, eram 161.

"Todos os projetos estão atrasados e com dificuldades. Só não faltam recursos para a área de algodão, que tinha dinheiro proveniente do contencioso comercial com os EUA", afirma à Folha uma pessoa envolvida nos projetos.

"O atual governo não tem nenhuma sensibilidade para política externa, muito menos para a África. Antes, não havia dinheiro para a África porque não era prioridade. Agora, não há dinheiro para a África porque não há dinheiro", diz ela, sob anonimato.

A ABC renegociou com alguns países, pedindo para compartilhar custos –quem não topou teve projetos cancelados. Agora, a agência está concentrada em concluir os projetos já iniciados.

Mesmo assim, por falta de recursos, alguns foram abandonados pela metade. É o caso do centro do Senai em Maputo ( Moçambique) para capacitar mão de obra. Os equipamentos foram comprados, mas faltam os US$ 3,5 milhões necessários à reforma da área designada para o centro.

"Houve considerável otimização no uso de recursos, com redução do custo médio dos projetos, embora tenha havido ajustes no número de atividades na África nos últimos dois anos", diz Fernando Abreu, diretor-geral da ABC.

Na sexta (20), durante almoço com embaixadores africanos em Brasília, o chanceler brasileiro Mauro Vieira disse que o engajamento do Brasil no continente africano é "uma política de Estado". Mas admitiu dificuldades.

"Ajustes conjunturais podem incidir momentaneamente (...), mas não alteram nossa noção de prioridades. A África foi, é e continuará a ser uma prioridade absoluta da política externa brasileira." Na semana que vem, Vieira viajará para Gana, São Tomé e Príncipe, África do Sul, Angola e Moçambique.

QUEDA NAS DOAÇÕES

Até a cooperação humanitária foi afetada. Em 2012, as doações à África foram de US$ 65,2 milhões. Em 2013, caíram 89%, para US$ 6,9 milhões. Em 2014, foram de US$ 11,9 milhões, mas só porque incluíram US$ 9,6 milhões de doação extraordinária para combate ao ebola (com atraso na liberação dos recursos).

O recuo vai na contramão da estratégia de "foco na África" de Lula e seu chanceler, Celso Amorim, que servia também à ambição do Brasil por maior protagonismo global.

O Brasil reivindicava assento permanente num Conselho de Segurança da ONU expandido. A África representa 50 votos. O governo credita duas conquistas ""as eleições de Roberto Azevêdo para a chefia da OMC e de José Graziano para a da FAO– a essa expansão africana.

Para Cleber Guarany, que trabalha há oito anos com projetos na África, o recuo da política externa brasileira afeta as empresas, hoje menos dispostas a se arriscar.

Segundo ele, a FGV chegou a ter 60 projetos em sete países, num total de US$ 3 bilhões, com apoio do governo brasileiro. Hoje são só dois, em Moçambique e Angola, "com freio de mão puxado".


Endereço da página: