Folha de S. Paulo


Após execução pelo Estado Islâmico, jornalista vira mártir controverso

A decapitação do jornalista James Foley pela facção terrorista Estado Islâmico, em agosto passado, suscitou ultraje global. Mas, para muitos católicos, a morte de Foley na Síria o converteu em um símbolo de fé sob as condições mais brutais.

Um ensaísta católico o comparou a são Bartolomeu, que morreu pela fé cristã. Outros citaram o relato feito por Foley de como ele orou com um terço durante um período anterior de cativeiro na Líbia. Mesmo o papa Francisco, em telefonema que fez aos pais de Foley para transmitir suas condolências, descreveu o jornalista como mártir, segundo a família.

Então chegou uma notícia inesperada: de acordo com alguns prisioneiros libertados, Foley teria sido um de vários reféns na Síria que se converteram ao islamismo no cativeiro. Algo que, para alguns católicos, tinha sido uma discussão teológica sobre a fé e a resistência heroica rapidamente converteu-se em perguntas de teor diferente: Qualquer conversão feita sob condições de coerção é legítima? É crível que um homem que falava tão abertamente de sua fé católica tenha se convertido ao islamismo? Em vista das circunstâncias, é surpreendente que ele o tenha feito?

"Como avaliar tudo isso?" perguntou o padre jesuíta James Martin, editor executivo da revista católica "America". Ele descreveu James Foley como um "homem santo e bom" e expressou dúvidas quanto à genuinidade de sua conversão. "Não podemos avaliar. Não podemos enxergar o que está na alma de uma pessoa."

Com frequência, a fé religiosa é descrita como algo que sustenta e fortalece pessoas em cativeiro, reconfortando-as e dando-lhes esperança. A família da americana Kayla Mueller, que morreu em fevereiro quando era mantida na Síria como refém do Estado Islâmico, divulgou uma carta escrita por Mueller no cativeiro em que ela fala em se entregar a Deus e se sentir "amorosamente amparada numa queda livre".

Para especialistas, a fé também pode ser uma força prática, na medida em que orações e a leitura de textos religiosos podem proporcionar ordem e disciplina a dias que, de outro modo, seriam definidos pelo medo, pela brutalidade ou até mesmo pelo tédio. E pode ser prática, também, como meio de sobrevivência: alguns reféns libertados relataram ter se convertido ao islã como tática para serem vistos com bons olhos por seus captores.

Para muitos católicos, questões como perseguição religiosa, conversão forçada e martírio são dolorosamente atuais.

O papa Francisco frequentemente critica a perseguição aos cristãos no Oriente Médio, onde militantes do Estado Islâmico obrigaram alguns cristãos a se converterem ao islamismo, sob pena de serem mortos.

Para muitos católicos, a morte de Foley pareceu ser permeada de nuances religiosas. De família católica, ex-coroinha, Foley fez trabalhos voluntários em escolas com alunos de baixa renda enquanto estudava na Marquette University, faculdade católica no Wisconsin, e então ingressou no programa nacional Teach for America, em que universitários formados dão aulas a crianças carentes. Passando a trabalhar com fotojornalismo, fez reportagens de guerra, trabalhando como freelancer no Iraque, no Afeganistão e na Líbia.

Foley passou 44 dias em cativeiro depois de ser capturado no conflito da Líbia, em 2011. Depois de libertado, ele agradeceu aos alunos da Marquette que tinham feito vigílias de orações por ele. Em carta à universidade, falou da importância de sua fé católica enquanto foi prisioneiro. Disse que ele e um colega de cela oravam em voz alta "para expressar juntos nossas fraquezas e esperanças, como que numa conversa com Deus".

Sua espiritualidade voltou a entrar em cena após sua morte sinistra na Síria, em agosto passado. Nas mídias sociais, muitos católicos encontraram inspiração em relatos feitos por reféns libertados que descreveram Foley como alguém que frequentemente dava sua comida ou seu cobertor a outros prisioneiros.

Alguns comentaristas católicos sugeriram que Foley poderia ser candidato a mártir católico. Outros questionaram a conveniência dessa discussão.

Em outubro, o jornal "The New York Times" detalhou a brutalidade do tratamento dado a Foley e outros no cativeiro e também citou reféns libertados dizendo que Foley e outros tinham se convertido ao islamismo. Foley foi descrito como sendo especialmente devoto e leitor fervoroso do Alcorão. Um refém libertado, Nicolas Hénin, disse que a conversão de Foley parecia genuína.

Alguns católicos se espantaram. A mãe de Foley, Diane, disse que Jejoen Bontinck, ex-refém belga que é muçulmano, descreveu a conversão de seu filho como um ato genuíno. Mas ela disse que ouviu uma versão diferente de reféns franceses e espanhóis libertados. "O que eles me disseram foi que, pelo fato de ter dito que tinha se convertido ao islamismo, James seria deixado em paz cinco vezes por dia, sem ser espancado, para poder orar", explicou.

Diane Foley descreveu seu filho como sendo profundamente interessado pela espiritualidade e pelas religiões de outras pessoas. Mas ela acredita que a conversão dele ao islamismo foi movida por considerações práticas. "Acho que o Senhor usou Jim de maneira magnífica em seus dois últimos anos de vida: Jim deu esperança a outros reféns."

Em artigos publicados no site de notícias Global Post e em uma palestra na universidade Marquette depois do período de cativeiro na Líbia, Foley contou que concordou em orar com seus colegas de cela muçulmanos. Ficou surpreso quando, depois de ele se lavar, eles o declararam convertido.

"Então, daquele momento em diante, passei a orar com eles cinco vezes por dia", disse na universidade. "Era algo tão forte, algo que eu precisava fazer para entrar em sintonia com aqueles homens que realmente dependiam de sua fé em Alá. Mas foi difícil. Eu ficava pensando 'Jesus, estou orando a Alá? Estou violando minha fé em ti?'. Só sei que eu estava autenticamente com eles e estava autenticamente rezando a Jesus."

Sua família disse que a mesma coisa aconteceu em seu cativeiro na Síria. Michael Foley, um de seus irmãos, comentou: "Acredito que, como foi o caso na Líbia, Jim se 'converteu' para poder sobreviver, para se aproximar de algumas das outras pessoas que estavam ali e para ter alguma disciplina em sua vida".

No Vaticano, o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, disse que qualquer conversão religiosa "não feita livremente não indica uma conversão". "Não se pode condenar pessoas que têm medo de morrer e por essa razão não revelam ser católicas", disse o cardeal. "Um cristão não tem a obrigação de ser mártir."


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