Folha de S. Paulo


Após terremoto, cidade do Japão treina 20 mil 'bombeiros voluntários'

Vinte anos atrás, Ohtsu Nobuhito era só um adolescente quando um forte terremoto arrasou sua casa e outras 108.125 edificações em Kobe.

Ele conseguiu sair da casa junto com os avós, com quem morava. Mas um vizinho ficou preso nos escombros. Em vez de tentarem resgatá-lo, os familiares preferiram esperar pelos bombeiros.

A ajuda nunca chegou e, horas depois, ele morreu.

Em outras partes de Kobe, os moradores não esperaram o resgate oficial. A decisão se mostrou acertada: das 35 mil pessoas retiradas dos entulhos com vida naquele dia, 77,5% foram salvas por civis.

Ao todo, morreram 6.400 pessoas no tremor.

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Com a estatística na mão e diante de um prejuízo que superava 34 vezes o Orçamento, a prefeitura decidiu treinar a população para enfrentar desastres, em vez de aumentar os gastos contratando mais bombeiros. No ano seguinte ao terremoto, foram criados os primeiros Bokomi (Organização Voluntária para a Prevenção de Desastre, na sigla em japonês).

Vinte anos depois da tragédia, Kobe mantém 191 Bokomi, com cerca de 200 casas cada um e dos quais participam cerca de 20 mil voluntários. Todos são treinados por uma equipe sob o comando de Nobuhito, que decidiu se tornar bombeiro ao ver o vizinho morrer soterrado.

Trata-se de contingente bastante superior ao das forças tradicionais de resgate de Kobe, que dispõem de 1.400 bombeiros e de 4.000 membros locais da versão japonesa da Defesa Civil. Antes do terremoto, havia apenas cem bombeiros a menos.

"Os Bokomi são a melhor estrutura para o caso de grandes desastres", diz Nobuhito, ao comparar com treinamentos em outras cidades.

Ele explica que, no terremoto de Kobe, era impossível atender a todos os casos por causa do alto número de desmoronamentos, da proliferação de incêndios e das vias bloqueadas pelo entulho.

Além do treinamento, realizado uma vez por mês, os Bokomi administram 300 hidrantes e dezenas de pequenos depósitos.

Cada Bokomi também elabora seu próprio plano de fuga. Trata-se de uma decisão difícil principalmente em caso de tsunami, quando o tempo para escapar é bem menor. "Houve diferenças na decisão sobre resgatar pessoas idosas: alguns resgatam, outros não resgatam, outros só em alguns casos", diz Nobuhito.

Ele admite que o sistema também tem seus problemas. O maior deles é que os membros estão envelhecendo, e há dificuldade em atrair substitutos jovens. "Aos poucos, as pessoas se esquecem do desastre", afirma.

RECONSTRUÇÃO

A reconstrução da cidade, que tomou dez anos, também levou em conta as lições aprendidas no terremoto. Comuns nos bairros residenciais da cidade, as vielas foram alargadas, e alguns parques ganharam equipamentos especiais, como bancos que escondem um vaso sanitário ou podem ser usados como fogões em caso de emergência.

Outra iniciativa foi criar, dentro da escola estadual Maiko, um curso de ensino médio voltado à prevenção de desastres. Ao longo de três anos, alunos de 14 a 17 anos têm aulas com bombeiros e participam de trabalhos voluntários, entre outras atividades.

Editoria de arte/ Folhatress

O processo, porém, não foi tranquilo. Nos meses seguintes, moradores protestaram contra a prefeitura, que, para obter rapidamente dinheiro federal, elaborou um plano de reconstrução às pressas, sem consulta às pessoas atingidas. Em várias regiões, o governo local foi obrigado a recuar, e os projetos acabaram sendo refeitos.

Outra fonte de insatisfação foi a falta de ajuda estatal para financiar a reconstrução das casas, limitada ao equivalente hoje a US$ 8.400.

"Dava para fazer uma casa de cachorro", afirma o aposentado Nanbu Hirotada, que hoje trabalha como guia do memorial do terremoto.

Por causa das críticas em Kobe, o governo japonês mudou as regras de ajuda para quem perde a moradia por desastre natural, ampliando a ajuda financeira, entre outros benefícios.

O jornalista FABIANO MAISONNAVE viajou a convite da Agência de Cooperação Internacional do Japão.


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