Folha de S. Paulo


Filme sobre Durst é atração de TV irresistível, mas também teste de ética

É o tipo de publicidade que você não consegue nem pagando. No dia anterior à transmissão pela HBO do episódio final de "The Jinx", um documentário em seis partes, o homem que serve de tema ao filme, Robert Durst, foi preso, sob acusação de homicídio.

A detenção gerou a impressão de que algo de dramático aconteceria no episódio final, e o programa não decepcionou. Durst proferiu o que pareceu ser uma admissão de culpa involuntária -no banheiro, aparentemente sem se lembrar de que o microfone usado para seu depoimento ainda estava ligado, ele murmurou: "Que diabos eu fiz? Matei todos eles, é claro".

Os cineastas responsáveis pela série, Andrew Jarecki e Marc Smerling, haviam aparentemente extraído uma confissão de Durst, herdeiro de uma das mais importantes dinastias imobiliárias de Nova York.

Durst, que foi renegado por sua família, está vinculado a três casos de homicídio em três décadas.

Mas esse triunfo cinematográfico desperta questões.

Quando os cineastas revelaram suas descobertas mais incriminadoras às autoridades? Será que a Justiça terminou por ser postergada -e um suspeito de assassinato com isso pôde viver em liberdade por mais tempo que o necessário- em benefício da narrativa? Será que o final dramático de "The Jinx" não servirá de material de defesa para os advogados de Durst?

"Haverá sugestões de que isso foi feito apenas para obter audiência, que a história toda é simplesmente uma encenação para a TV", previu Mark Geragos, renomado advogado de defesa em casos criminais.

Os cineastas parecem ter conduzido dois conjuntos separados de entrevistas com Durst.

O primeiro aconteceu em dezembro de 2010, em Los Angeles, o segundo em abril de 2012, em Nova York.

Eles não notificaram as autoridades policiais nem a Justiça de suas conversas com Durst até vários meses mais tarde, em outubro de 2012.

Em entrevista ao jornal "The New York Times" na manhã de segunda-feira, Jarecki e Smerling disseram que não haviam considerado necessário contatar a polícia antes de concluir seus "negócios" com Durst.

"Obviamente, não somos policiais, e é importante que mantenhamos nossa posição como jornalistas e cineastas", disse Jarecki, acrescentando que ele e Smerling desejavam deixar claro que não estavam trabalhando a pedido da polícia.

O risco de criar essa percepção é o de que a equipe de defesa de Durst venha mais tarde a afirmar que eles estavam, para todos os efeitos, colaborando com a polícia, e que por isso deveriam ter notificado a Durst que as declarações que fez poderiam ser usadas contra ele.

Os cineastas disseram que a afirmação de Durst de que havia "matado todos eles" surgiu bem no final da segunda entrevista, mas que eles não haviam ouvido o trecho até quase dois anos mais tarde.

"Contratamos alguns assistentes novos, e eles estavam verificando todo o material antigo", disse Jarecki.

Ele consultou suas anotações e disse que a aparente confissão foi descoberta em junho.

Perguntados sobre a data em que revelaram a declaração às autoridades, os cineastas se recusaram a fornecer uma resposta específica.

"Precisamos tomar cuidado com a maneira pela qual descrevemos os detalhes do caso, e por isso o que vamos declarar a respeito é que fornecemos as provas relevantes às autoridades alguns meses atrás, e a bola está com elas", disse Jarecki.

Mike Segar/Reuters
O milionário americano Robert Durst, suspeito de ser o autor de três assassinatos
O milionário americano Robert Durst, suspeito de ser o autor de três assassinatos

Os cineastas talvez não tivessem obrigação legal de entregar as provas à autoridade de imediato. Mas, para além das questões jurídicas que o caso envolve, há também questões éticas.

Quais são as responsabilidades dos cineastas -ou, aliás, de jornalistas- que venham a obter provas que podem culpar ou inocentar acusados durante uma investigação?

É uma questão sem respostas fáceis. Muita coisa poderia ter acontecido nos meses entre a entrevista final dos cineastas com Durst e sua primeira conversa com a polícia.

Durst poderia ter fugido. Ele poderia ter morrido, e com isso privado as famílias de suas supostas vítimas de justiça. Ou, se ele de fato é um assassino serial, Durst poderia ter matado mais alguém.

Os resmungos dele no banheiro foram a grande revelação do filme, mas podem ser de pouco uso quando o caso for a julgamento.

Para começar, a promotoria precisará provar para além de qualquer dúvida que as gravações não foram adulteradas.

A defesa também pode argumentar que elas aconteceram depois que os cineastas emboscaram Durst em uma entrevista, que ele estava abalado e, aparentemente, não estava raciocinando com clareza.

A formulação da aparente confissão é problemática, por si só. Embora seja sugestiva, de forma nenhuma é conclusiva.

Em coluna na "Bloomberg View", o professor Noah Feldman, da Escola de Direito da Universidade Harvard, a comparou a um monólogo shakespeariano.

"Até mesmo o formato de pergunta e resposta -'que diabos fiz? Matei todos eles, claro'- lembra os monólogos nada confiáveis pronunciados por Hamlet", escreveu Feldman.

"O protagonista se faz a grande pergunta, sozinho no palco -'ser ou não ser?'- e experimenta diferentes respostas".

O momento da detenção de Durst pode ter sido coreografado, mas também é verdade que, à medida que "The Jinx" se aproximava do clímax, a chance de que Durst tentasse fugir era cada vez maior.

Quando ele foi detido em um hotel de Nova Orleans, onde estava hospedado sob um nome falso, os produtores de "The Jinx" ficaram aliviados.

"Estávamos preocupados, porque Bob estava se movimentando demais", disse Jarecki, afirmando que ele e Smerling tinham começado a temer por sua segurança.

E isso talvez venha a ser a última coisa que Jarecki poderá declarar em público por algum tempo.

Pela metade do dia na segunda-feira, ele havia cancelado todas as suas entrevistas, entre as quais uma no programa "Tonight Show".

"Já que é provável que sejamos convocados a depor em qualquer caso que as autoridades decidam promover contra Robert Durst", afirmaram os cineastas em declaração, "não seria apropriado para nós continuar a comentar essas questões".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: