Folha de S. Paulo


Atual governo de Israel não representa mais o espírito dos israelenses

"Desde a guerra, sinto que não estou aqui", diz meu vizinho da esquerda enquanto seu cachorro urina em minha cerca.

"Caminho pela rua e sinto que as solas de meus pés nem tocam a sujeira espalhada ao meu redor. Como se eu estivesse flutuando 20 centímetros acima da calçada. Sabe o que quero dizer? Como se eu fosse um turista em um país do qual não me sinto parte. É uma sensação terrível".

Não foi a primeira vez que ouvi alguém falar sobre a sensação de se tornar forasteiro em seu próprio país.

Alguns norte-americanos mencionaram sentimento semelhante quando George Bush filho foi eleito para o segundo mandato, e outros, no extremo oposto do espectro político, quando Barack Obama assumiu o governo.

Uma situação na qual o cidadão acredita em uma determinada administração e termina por ter de conviver com outra é comum e normal em todos os países democráticos.

Mas há momentos menos frequentes, e mais difíceis, nos quais um eleitor sente que o governo eleito não só não representa suas posições como tampouco representa o espírito do povo.

Houve alguns momentos como esse na curta história do Estado de Israel, e parece que quanto mais se enfraquece a coesão social, mais frequentes e intensos eles se tornam.

No momento dos acordos de Oslo, muita gente que defendia a criação de um Grande Israel acreditava que o governo estava se afastando de sua missão ao dar aos palestinos territórios que segundo essas pessoas Deus havia conferido a nós.

Esse senso de alienação com relação ao governo conduziu, por fim, ao assassinato do primeiro-ministro que então governava Israel.

Um momento não menos traumático para os defensores de um Grande Israel foi a retirada de Gaza, quando muitos colonos viram o Exército, enviado à região para retirá-los à força, como uma força cruel e estrangeira, e não como o Exército do povo.

E hoje, sob o mais direitista e racista dos governos na história do Estado de Israel, chegou a vez de um público diferente se sentir sub-representado e isolado de seus líderes.

O nome que os líderes de direita empregam para descrever esse público, que na metade do ano passado sofreu ameaças e boicotes, é "esquerda radical".

Mas essa designação populista está longe de proceder -basta ver que o presidente de Israel, Reuven Rivlin, importante líder da ala direita no país, é um dos críticos mais eloquentes do governo e do caminho não democrático pelo qual este está nos conduzindo.

"Esquerdistas", portanto, é uma denominação equivocada para todas aquelas pessoas que sentem que o espírito da liderança do país divergiu do espírito de seu povo.

Seria mais acurado denominá-las liberais e democratas, porque acreditam que igualdade e liberdade de expressão sejam aspectos vitais da moderna sociedade judaica, especialmente diante da perseguição e da iniquidade que nosso povo sofreu ao longo da história.

Nos últimos nove meses, Israel passou por muitos acontecimentos que solapam seu caráter liberal e democrático.

No plano político, durante a operação "Protective Edge" (Limite Protetor), ouvimos nosso ministro do Exterior apelar por um boicote às empresas árabes porque seus proprietários se identificavam com o sofrimento dos civis em Gaza.

Vimos o provocativo ingresso de famílias judias em bairros árabes de Jerusalém Oriental e a não menos provocativa visita de um membro do Knesset (Parlamento) ao Monte do Templo.

Na esfera legislativa, diversas leis problemáticas foram colocadas em debate no Knesset, a mais flagrante das quais é a Lei dos Imigrantes, claramente ilegal, e a Carta do Estado Judaico, ambas criadas para distinguir entre os cidadãos judeus do país e aqueles que têm crenças religiosas distintas.

Mas não é só nos corredores do Knesset que esse espírito combativo fervilha: desde o sequestro e assassinato de três adolescentes em Gush Etzion, em junho passado, vimos uma onda de crimes de ódio que começou pelo horripilante homicídio de um menino palestino, continuou por meio de manifestações desordeiras durante o casamento de um homem árabe e uma mulher judia em Jaffa e culminou, duas semanas atrás, com o incêndio criminoso da escola bilíngue de Jerusalém, um dos mais belos e comoventes exemplos da coexistência entre árabes e israelenses em Israel.

Não há nada como uma nova campanha eleitoral para forçar que meu vizinho esquerdista e seu cachorro encarem a realidade.

Ele não poderá se afundar nas páginas de um bom livro, e em lugar disso se verá forçado a contemplar os fatos e votar naquela que pode se tornar uma das mais importantes eleições da história israelense.

E, se ele optar por abrir mão desse direito democrático, será em parte responsável pelas injustiças que vierem a se seguir.

No fundo, todos os cidadãos deste país sabem que as próximas eleições determinarão não só nosso futuro político e econômico mas, antes e acima de tudo, o futuro social e moral do país.

Aspiramos ser, como demandam os proponentes da Carta do Estado Judaico, um país primeiro judaico e depois democrático, ou buscaremos ser uma sociedade igualitária que não faça distinções nem discrimine cidadãos cujas crenças religiosas sejam diferentes?

Há quem diga que, se não optarmos pelo Terceiro Templo, nos veremos de novo em Sodoma e Gomorra.

Outros dirão que, se não mantivermos o modelo ocidental, terminaremos no Irã.

ETGAR KERET, 47, autor israelense, lança neste ano no Brasil o livro "Sete Anos Bons" (editora Rocco)

Tradução para o inglês de SONDRA SILVERSTON

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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