Folha de S. Paulo


Um ano após anexação pela Rússia, Crimeia vive isolada da Europa

"Traga muito dinheiro vivo, porque cartão não funciona mais". O alerta do taxista Andrew Shabelnick, 37, reflete um pouco do que mudou na Crimeia um ano depois da anexação pela Rússia.

Basta desembarcar no aeroporto da capital Simferopol para ter logo essa percepção.

A península está praticamente isolada da Europa - com exceção da própria Rússia, obviamente.

As cabines de imigração estão lacradas. Não há mais voos internacionais -para chegar à Crimeia, somente partindo do território russo.

Yuri Lashov - 25.fev.2015/AFP
Restauração de estátua do líder soviético Lêninem Simferopol, na Crimeia
Restauração de estátua do líder soviético Lêninem Simferopol, na Crimeia

A estação de trem está às moscas depois que se interrompeu a rota até Kiev, capital da Ucrânia, país que controlava a península até março do ano passado.

O sinal do telefone celular da reportagem da Folha foi bloqueado pela operadora britânica imediatamente no pouso do avião, como reflexo do boicote ocidental contra a anexação.

A tentativa de comprar um sanduíche ou qualquer outra coisa com cartão de crédito é frustrante.

Paga-se bebida e comida apenas com dinheiro vivo, já que empresas como Visa e Mastercard não operam por causa das sanções do governo dos Estados Unidos.

Hotéis, supermercados, bares e restaurantes só aceitam "cash".

O turismo caiu pela metade nesse período, e a inflação disparou.

Durante a crise em março do ano passado, quando a Crimeia ainda era território ucraniano, o taxista Shabelnick integrava a maioria da população a favor de se juntar à Rússia.

E como está a vida agora sendo parte dela? "Temos muitos problemas, mas não é pior do que nos tempos da Ucrânia, porque nunca ligaram muito para nós", responde o taxista.

Moradores destacam pontos positivos, como a participação do Estado em serviços antes privados.

"Tínhamos que pagar por qualquer tipo de serviço médico. Agora, é gratuito", diz Svetlana Ivanova, 60, que vive na capital.

Talvez o maior símbolo dessa transição sejam placas de carros da Rússia e da Ucrânia circulando ao mesmo tempo pelas ruas.

Os veículos de transporte público, como ônibus e vans, já estão com identificação russa, enquanto a maioria dos moradores mantém a ucraniana.

Os motoristas têm prazo de dois anos para a mudança, assim como para regularizar contas bancárias e documentos, entre outras coisas.

Outro símbolo da anexação é a lanchonete McDonald's ao lado da estação de trem de Simferopol. Sua fachada continua intacta, mas a loja fechou as portas.

A Ucrânia, que controlava o território desde 1954, perdeu de vez o domínio da Crimeia quando tropas pró-Moscou invadiram a área, entre fevereiro e março de 2014.

Um referendo local aprovou, no dia 16 de março, a anexação pela Rússia, com 97% dos votos.

Cinco dias depois, o presidente Vladimir Putin oficializou a decisão. O governo ucraniano não esboçou reação militar capaz de reverter a situação.

Hoje, um ano depois, a sensação é de segurança absoluta na região -não há sinais de nenhuma ameaça de tropas de Kiev para tentar retomar o controle.

ESTOPIM

O episódio da Crimeia foi estopim para rebeldes começarem um conflito no leste da Ucrânia também reivindicando a separação.

Os Estados Unidos e a União Europeia não reconhecem a anexação da península e aplicaram sanções econômicas contra a Rússia e a Crimeia.

O presidente Vladimir Putin tem prometido medidas para amenizar o isolamento, entre elas o investimento de US$ 11 bilhões até 2020.

Anunciou a construção de uma ponte em quatro anos ligando os dois territórios para acabar com a sensação de que a Crimeia virou uma espécie de "ilha" da Rússia.

A obra, estimada em US$ 3 bilhões, foi entregue ao SGM Group, de Arkady Rotenberg, amigo de infância e parceiro de judô do presidente.

O governo promete um sistema que permita o uso de cartões de crédito americanos ainda em 2015.

Putin aposta na popularidade entre os 2 milhões de habitantes da Crimeia, pelo menos 60% de origem russa, para conter esse desgaste e a pressão externa.

A troca da moeda ucraniana (hrivna) pela russa (rublo) não causou tantos problemas, porque a economia ucraniana enfrenta uma turbulência tão grande quanto a dos vizinhos ou maior.

Em dólares, a média salarial na Crimeia em dezembro de 2014 era de US$ 354, ante US$ 164 nos tempos de Ucrânia, um ano antes.


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