Folha de S. Paulo


Análise: Por que jamais saberemos quem matou Boris Nemtsov

Nas 72 horas posteriores ao assassinato de Boris Nemtsov, o Kremlin fez circular numerosas explicações sobre sua morte, Vladimir Putin definiu o homicídio como "provocação".

É uma palavra estranha. O que Putin quis dizer com ela é que quem quer que tenha assassinado Nemtsov o fez para desacreditar o Estado. E já que o Estado é a principal vítima no caso, o Estado não pode ser responsável pelo homicídio, dispõe essa linha de raciocínio.

Outros culparam extremistas islâmicos. Ou fascistas ucranianos. Ramzan Kadyrov, o aliado brutamontes de Putin que serve como presidente da Tchetchênia, acusou "agências ocidentais de espionagem", um velho favorito.

O site sensacionalista Lifenews.ru, que tem estreito relacionamento com o FSB, agência de espionagem da qual Putin fez parte no passado, apontou para a movimentada vida amorosa de Nemtsov. No momento em que foi morto, o site aponta, ele estava caminhando nas cercanias do Kremlin com uma modelo ucraniana.

A única explicação que não está sendo dada em Moscou pela morte de Nemtsov na noite de sexta-feira é a mais dolorosamente evidente delas: a possibilidade de que tenha sido assassinado por suas atividades de oposição ao governo.

Especificamente, por suas críticas muito públicas à guerra secreta de Putin na Ucrânia, que causou ao menos seis mil mortes nos últimos 12 meses e que –de acordo com amigos de Nemtsov– ele estava a ponto de expor.

Nemtsov era um dos poucos progressistas russos corajosos o bastante para denunciar o extenso apoio militar clandestino de Putin aos rebeldes separatistas na Ucrânia.

Ele descreveu a maneira pela qual o presidente russo anexou a Crimeia, usando forças especiais disfarçadas, como "ilegal", ainda que reconhecesse que a maioria dos moradores da região preferia fazer parte da Rússia. Em sua entrevista final, na sexta-feira, Nemtsov denunciou o presidente russo como "mentiroso patológico".

Na entrevista, à rádio moscovita Echo, politicamente progressista, Nemtsov parecia animado. Foi muito sarcástico. Atacou as políticas do Kremlin como um "beco sem saída" e criticou a direção da economia.

As críticas de Nemtsov ao Estado russo eram persistentes. Desde que foi excluído da política legislativa de seu país, uma década atrás, Nemtsov fundou diversos movimentos de oposição a Putin, mas já que a mídia estatal está sob o controle do Kremlin, ele se viu excluído da TV. Vivia marginalizado.

O que mudou a situação foi a guerra da Ucrânia e a detonação de uma onda de histeria nacionalista e ódio, nos canais federais de TV russos. A TV estatal regularmente definia Nemtsov como membro da quinta coluna.

Depois de seu homicídio, a NTV discretamente retirou da programação um novo ataque a Nemtsov chamado "Anatomia de um Protesto", que seria exibido na noite de domingo.

Quando 2015 chegou, a maioria dos demais líderes oposicionistas russos já estava no exílio (o antigo oligarca Mikhail Khodorkovsky, o ex-campeão de xadrez Gary Kasparov) ou na cadeia (como o blogueiro Alexei Navrilov, que comandava uma campanha contra a corrupção).

Tudo isso tornava Nemtsov especialmente vulnerável. Horas antes de ser assassinado, porém, ele declarou dispor de provas "documentais" de que soldados russos disfarçados estavam combatendo e morrendo no leste da Ucrânia.

Trata-se de uma afirmação confirmada pelo retorno regular de caixões que chegam à Rússia de madrugada vindos da zona de guerra em Donetsk e Luhansk. De acordo com seu amigo Ilya Nashin, Nemtsov estava preparando um texto explosivo sobre o assunto.

Nemtsov já havia escrito outros panfletos dissidentes. Um deles, "Putin: o acerto de contas", acusava o presidente russo e seus assessores mais próximos de corrupção pessoal em escala gigantesca. Outro tomava por alvo Yuri Luzkhov, ex-prefeito de Moscou, posteriormente derrubado.

Mas o novo trabalho tratava diretamente da grande mentira do Kremlin. No final de semana, a polícia confiscou os discos rígidos de Nemtsov. Parecia haver pouca perspectiva de que sua mais recente polêmica fosse publicada.

Em lugar disso, o Kremlin parecia estar se encaminhando a um antiquado acobertamento. Na segunda-feira, as autoridades do Kremlin anunciaram, implausivelmente, que as câmeras de segurança próximas ao local do assassinato de Nemtsov "não estavam funcionando".

O líder oposicionista havia jantado com a namorada, a ucraniana Anna Duritskaya, no GUM, um shopping center. Depois eles caminharam juntos pela Praça Vermelha e ao longo dos muros do Kremlin. Às 23h30min, começaram a atravessar uma ponte sobre o rio Moscou.

De acordo com Duritskaya, alguém surgiu de uma escadaria logo atrás deles. O assassino disparou seis vezes contras as costas de Nemtsov. Quatro balas o atingiram no coração, e ele morreu instantaneamente. O matador em seguida escapou em um carro branco que o esperava, dirigido por um cúmplice.

O carro desapareceu noite adentro. Duritskaya disse à Rain, uma estação progressista de TV, que não havia conseguido ver a pessoa que disparou os tiros fatais. Os investigadores recuperaram balas de calibre 9 mm. Não localizaram a arma do crime.

O local do homicídio, porém, basta para contar uma história apavorante: um opositor de Putin morto na rua sob as muralhas que simbolizam o poder da Rússia, e ao lado de um dos marcos do país, a catedral de São Basílio.

A cena é visualmente perfeita para a TV. Parece extraordinário que um homem que no passado foi primeiro-ministro assistente tenha sido assassinado naquele local, diante do equivalente russo à Casa Branca ou à sede do Parlamento britânico, e que o atirador tenha aparentemente conseguido escapar sem dificuldade.

As autoridades divulgaram imagens cuidadosamente selecionadas registradas por uma câmera de segurança muito distante. Um removedor de neve obscurece o momento em que Nemtsov é atingido. Como todas as grandes figuras da oposição, Nemtsov estava sob vigilância do FSB, a agência que sucedeu o KGB.

O FSB dedica enormes esforços a manter seus alvos sob observação. Mas no momento do assassinato, porém, uma organização conhecida por seus recursos e pessoal ilimitados parece tê-lo perdido de vista.

Nos últimos meses, Nemtsov vinha expressando medo crescente de ser assassinado. Em entrevista ao "Financial Times" na segunda-feira passada, ele disse que Putin era claramente capaz de matar, afirmando que "ele é um ser humano totalmente amoral. Totalmente amoral. É um leviatã".

Nemtsov prosseguiu: "Putin é muito perigoso. É mais perigoso do que os soviéticos foram. Na União Soviética, ao menos havia um sistema, e as decisões eram tomadas pelo politburo. Decisões sobre ir à guerra, sobre matar pessoas, não eram tomadas só por Brezhnev ou só por Andropov; mas hoje é assim que funciona".

Provavelmente jamais saberemos quem matou Boris Nemtsov. O Kremlin se exime de culpa. A despeito dessa negação, é inteiramente possível que o Estado tenha ordenado o chocante assassinato de Nemtsov, e igualmente possível que obscuras forças nacionalistas tenham decidido matar alguém que costumava ser regularmente estigmatizado como espião para os Estados Unidos.

Como apontaram muitos dos amigos de Nemtsov, Putin fomentou deliberadamente essa atmosfera de histeria e ódio. E foi ela que permitiu que Nemtsov fosse assassinado. Por isso a responsabilidade moral pelo crime cabe ao presidente, dizem.

Enquanto isso, o comentário de Putin de que assumiria controle pessoal da investigação não serve exatamente para inspirar confiança. Em lugar disso, as ações do Kremlin sugerem que o principal objetivo agora é confundir o público russo.

As diversas "versões" sobre o assassinato de Nemtsov - de ataque passional a militantes islâmicos inspirados pelo ataque à "Charlie Hebdo", passando por "provocação" - são parte de uma sofisticada estratégia de mídia pós-moderna. Como se poderá descobrir qual delas é verdade?

Na verdade o objetivo é eliminar a distinção entre o que é e o que não é verdade, e com isso fazer com que a verdade desapareça. O Russia Today, um dos canais de propaganda do Kremlin, usa as mesmas técnicas junto a audiências ocidentais.

Sua diretora, Margarita Simonyan, argumenta que não existe "verdade", mas simplesmente diferentes narrativas. A narrativa russa é tão válida quanto a "narrativa ocidental", ela argumenta. Nesse mundo cínico e relativista no qual versões concorrentes circulam sem controle, nada é realmente verdade. E no entanto alguém matou Boris Nemtsov a tiros. Ele estava vivo e agora está morto.

Métodos como esses foram usados em casos anteriores nos quais inimigos do Estado russo surgiram misteriosamente mortos. A lista é longa. Em outubro de 2006, um atirador matou a jornalista Anna Politkovskaya na escadaria de seu edifício de apartamentos em Moscou.

Depois do assassinato, Putin a descartou como basicamente "insignificante" na Rússia e "famosa só no Ocidente". Na sexta-feira, o porta-voz de Putin, Dmitry Peskoy, ecoou esse comentário, sugerindo, da mesma forma, que Nemtsov era uma figura marginalizada, "em nada mais importante que um cidadão comum".

Três semanas depois que Politkovskaya foi assassinada, dois assassinos de Moscou eliminaram outro crítico bem conhecido de Putin, Alexander Litvinenko. No mês passado, um inquérito sobre o homicídio de Litvinenko, em 2006, foi aberto na Alta Corte de Londres.

Nesse caso ao menos a polícia britânica foi capaz de obter uma montanha de provas: imagens de câmeras de segurança mostrando Litvinenko no local do homicídio, em Mayfair; registros telefônicos de dois dos suspeitos, Andrei Lugovoi e Dmitry Kovtun; testemunhas que estavam no bar de um hotel quando Litvinenko bebeu meia xícara de chá verde radiativo.

O presidente do inquérito, Sir Robert Owen, anunciará suas conclusões mais tarde. Já sugeriu que existem "indicações fortes" de que se trate de um assassinato a mando do Estado russo. As provas sustentam essa interpretação.

Lugovoi e Kovtun envenenaram Litvinenko com polônio-210, um isótopo raro produzido em reator nuclear. Quando identificado, é fácil traçar a origem do material. A Scotland Yard rastreou o polônio em seu caminho de Moscou a Londres: em assentos de avião, quartos de hotel e no cachimbo sisha (preço: 9 libras) que Lugovoi fumou em um bar marroquino.

Dois antigos agentes do KGB parecem ter matado Litvinenko, portanto, usando o equivalente a uma pequena bomba nuclear. Como no caso de Nemtsov, Putin negou envolvimento. Enquanto isso, Lugovoi prosperou.

Tornou-se legislador por um partido ultranacionalista na Duma (câmara federal) russa. Ele ofereceu sua versão para o assassinato de Litvinenko, atribuindo a culpa ao então primeiro-ministro britânico Tony Blair, ao MI-6 (o serviço secreto britânico) e ao oligarca Boris Berezovsky. No final de semana, ele foi entrevistado pelo canal de TV estatal russo "Rossiya TV" para falar de suas teorias sobre a morte de Nemtsov.

Durante meus quatro anos como chefe da sucursal do "Guardian" na Rússia, cobri homicídios semelhantes. Stanislav Markelov, advogado e defensor dos direitos humanos, foi morto a tiros em 2009 perto dos domos dourados da catedral de Cristo Salvador.

Em sua companhia foi morta Anastasia Barburova, 25, repórter do "Novaya Gazeta", um jornal oposicionista. Quando cheguei ao local do crime, o corpo de Markelov já havia sido removido. Manchas de sangue de um vermelho forte eram visíveis sobre a neve branca. Não havia muitas pistas. Dois neonazistas terminaram condenados pelos homicídios.

No julgamento do grupo de tchetchenos acusados do assassinato de Politkovskaya, conheci Natalia Estemirova, amiga da jornalista morta e funcionária da respeitada organização de defesa dos direitos humanos Memorial.

Estemirova vivia em Grozny, Tchetchênia, e documentava os abusos contra os direitos humanos praticados tanto pelos rebeldes islâmicos quanto pelas forças de segurança sob o comando de Ramzan Kadyrov.

Na metade de 2009, ela foi sequestrada em sua casa por homens armados que a levaram de carro à Ingushetia, uma república vizinha. Lá eles a tiraram do carro e a conduziram a um bosque, onde Estemirova foi morta com cinco tiros na cabeça e peito.

Os assassinos de Estemirova jamais foram apanhados. Diversos tchetchenos terminaram condenados pelo homicídio de Politkovskaya. Mas a pessoa que organizou o ataque jamais foi capturada, e não surgiu motivo plausível para o homicídio.

Na ausência de uma investigação isenta, de respeito às normas processuais e mesmo de expressões de pesar oficial, as suspeitas de cumplicidade da parte do Estado persistem. O que se pode afirmar com certeza é que os críticos que incomodam o Kremlin tem o estranho hábito de aparecerem mortos, na Rússia de Putin.

Há também o caso de Sergei Magnitsky. Ele era um advogado russo que descobriu uma fraude de US$ 280 milhões por funcionários do Ministério do Exterior e do serviço tributário russo. Esses mesmos funcionários encarceraram Magnitsky.

Exigiram que ele retirasse seu depoimento contra eles. Ele se recusou. Por isso, teve negado o acesso a atendimento médico. Adoeceu gravemente. Em novembro de 2009, soldados da polícia de choque entraram em sua cela e o espancaram até a morte.

O Kremlin subsequentemente colocou Magnitsky em julgamento mesmo que ele já estivesse morto, porque países ocidentais impuseram sanções aos funcionários corruptos envolvidos.

No domingo, dezenas de milhares de pessoas marcharam no local em que Nemtsov foi morto. Algumas portavam cartazes dizendo "je suis Nemtsov", e outros cartazes identificavam as "quatro balas" que o atingiram dando-lhes os nomes dos quatro canais estatais de TV russos.

Em Londres, manifestantes realizaram uma vigília do lado de fora da embaixada russa, com flores e velas. Perguntei a uma amiga russa quem ela achava ser responsável pela morte de Nemtsov. A resposta dele foi simples e triste: "Leviatã o matou".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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