Folha de S. Paulo


Análise

Diferentes na ação, Estado Islâmico e Boko Haram deturpam islã

Organizações terroristas como Boko Haram e Estado Islâmico conseguem se enraizar facilmente em sociedades cujo nível de corrupção é elevado, as instituições estatais são vulneráveis e a clivagem sociorreligiosa é latente.

O Boko Haram surge no seio de uma sociedade tribal, dividida religiosamente e permeada por agudas disfunções sociais e institucionais. Trata-se, pois, de um fenômeno endógeno que emergiu, inicialmente, como seita religiosa separatista no nordeste da Nigéria e logo se consolidou, "vis-à-vis" o vácuo de poder após décadas de conflito.

Já o EI foi forjado a partir de um conglomerado de forças exógenas como entidade supranacional de terroristas e, ainda, da fusão de múltiplas nomenclaturas num mesmo composto do terror.

Engrossam a esquadra mercenária do EI combatentes árabes, paquistaneses, afegãos, europeus, americanos, latinos, eslavos, caucasianos e, ainda, guerrilheiros tchetchenos com experiência da guerra dos Bálcãs.

O EI possui estrutura sofisticada de combatentes e substantivo arsenal de armamentos de curto e médio alcance.

Sua estrutura econômica é organizada e conectada a plataformas de apoio direto por parte de Estados da região. Seu objetivo transcende o limiar da política local, e sua operacionalidade é vinculada à dinâmica do poder regional e à agenda de segurança internacional.

Diferentemente, o Boko Haram possui estrutura bélica de baixa envergadura e sem "know-how" qualificado para combates de longa duração.

Ademais, o principal vetor econômico do grupo africano é estruturado no contrabando, no tráfico de drogas, de armas e de pessoas e em saques.

O limiar de operacionalidade do Boko Haram é constrito ao contorno entre Chade, Níger e Camarões e, portanto, não representa risco real à segurança internacional.

Quanto ao viés doutrinário religioso, o EI assume sua inspiração na ortodoxia do salafismo wahabita.

Já os integrantes do Boko Haram pertencem, majoritariamente, aos grupos étnicos hausa e fulani, cuja escola de jurisprudência islâmica é a sunita maliki, comum no norte e no oeste da África.

Das cinco escolas de jurisprudência no mundo islâmico, quatro são sunitas (Hanafi, Malki, Shaf'i e Hanbali) e uma é xiita (Ja'fari).

A ausência de centralidade hierárquica no sunismo, por meio de suas quatro escolas de jurisprudência, remete a uma comparação ao organograma de hierarquia do protestantismo.

Sua formatação é a de uma estrutura clerical mais horizontal. Por esse viés de distribuição do poder religioso, a jurisprudência do sunismo tem sido usurpada.

O Boko Haram e o EI criaram, de forma desvinculada da centralidade oficial do islã sunita, sinecuras de jurisconsultos em leis islâmicas sem a devida formação legal.

Sua intenção é mover de forma charlatanesca uma fábrica de "fatwas" para acomodar seus interesses. Ambos deturpam de forma grotesca os princípios do islã.

HUSSEIN KALOUT é cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador da Universidade Harvard.


Endereço da página: