Folha de S. Paulo


Crítica: Livro do ex-chanceler permite que fatos vençam a versão

Se a leitura de "Teerã, Ramalá e Doha "" Memórias da Política Externa Ativa e Altiva" se der sem pré-conceitos, permitirá que se corrija uma distorção em relação ao Acordo de Teerã, o mais ruidoso momento da diplomacia brasileira no período Lula/Celso Amorim (2003/2010).

Qual a distorção? Prevaleceu na narrativa da mídia ocidental, com raras exceções, a visão de que o acordo de 2010 entre o Brasil, o Irã e a Turquia foi uma ação amadorística, ingênua e com vistas a atrapalhar os EUA.

No livro, Celso Amorim presta detalhadas contas de todas as suas iniciativas relacionadas ao tema e, com isso, demonstra que foi um trabalho profissional.

Como acompanhei, como repórter, boa parte de seus movimentos (e os de Lula), posso dar testemunho de que o ex-chanceler não está mentindo nem exagerando.

Amorim conversou, antes da viagem em que o acordo seria assinado, com um punhado de autoridades estrangeiras e informou-se sobre o tema nuclear com especialistas, até porque, como confessa no livro, não era um perito.

Conversas basicamente com líderes ocidentais empenhados em levar o Irã a um acordo que o afastasse do uso militar da energia nuclear. Líderes como a alemã Angela Merkel e o francês Nicolas Sarkozy, que podem ser acusados de muita coisa, menos de ingênuos ou de leniência com o regime dos aiatolás.

O roteiro seguia uma premissa nascida de uma das primeiras conversas de Lula com Barack Obama a respeito do Irã. Nela, relata Amorim, o presidente norte-americano teria dito algo como "precisamos de amigos que possam conversar com países que se recusam a falar conosco".

Para ser esse "amigo" que Obama buscava, Lula/Amorim apoiaram-se num elemento mais concreto: uma carta que o americano encaminhou a Lula e ao líder turco Recep Tayyip Erdogan, nas vésperas da viagem ao Irã, na qual alinhava os pontos essenciais para o acordo que o Brasil já costurava com Teerã.

Amorim conta: "Decidimos nos concentrar nos elementos que figuravam na carta do presidente Obama". Que o acordo tenha sido desprezado pelos EUA é um mistério que o livro trata de uma maneira apenas superficial.

Tudo indica que os EUA já haviam trocado o modo engajamento (com o Irã), com o qual Obama assumira, pelo modo confronto, explicitado em seguida. Só esqueceram de avisar o Brasil –daí a impressão, falsa, de amadorismo e de desejo de atrapalhar os planos de Washington.

Nesse e nos dois outros temas do livro, fica claro que a política externa do período foi de fato ativa, como consta do título. Já altiva é um conceito subjetivo, que os críticos de Amorim, dentro e fora do Itamaraty, contestam.

O livro permite ainda verificar, sem grande esforço, que a diplomacia brasileira perdeu vigor e dinamismo com a saída de Lula e de Amorim.

Em parte se explica pelo fato de que Lula, segundo Amorim, compreendia que o chanceler deveria ter agenda própria, à margem da desenvolvida pelo chefe do governo.

Agenda não no sentido de estabelecer linhas políticas próprias, mas de movimentar-se pelo mundo mesmo quando o chefe ficava em casa cuidando dos assuntos internos.

Se o ministério chama-se Ministério de Relações Exteriores, o natural é que seu titular passe a maior parte do tempo no exterior.

Foi o que Amorim fez –e o livro é uma ampla prestação de contas sobre suas atividades, pelo menos em relação aos temas nele tratados.

Não creio que baste para calar as críticas a esse agitado período, mas, pelo menos, elas poderão ser feitas a partir dos fatos, e não de versões.

TEERÃ, RAMALÁ E DOHA
AUTOR Celso Amorim
EDITORA Benvirá
QUANTO R$ 64,90 (536 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom


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