Folha de S. Paulo


Ex-escravas relatam rotina de horror imposta pelo Estado Islâmico

Sanaa se preparava para almoçar com a família quando eles chegaram em picapes brancas Toyota e Kia. Armados com metralhadoras, os milicianos do Estado Islâmico gritavam: "Vocês são infiéis, vocês são infiéis!"

Separaram mulheres e crianças para um lado, homens para o outro.

Foi a última vez que Sanaa viu seu pai e seu irmão de 15 anos.

Sanaa, 21, e suas duas irmãs, Hanaa, 25, e Hadyia, 18, foram levadas do vilarejo de Kojo para Mossul, cidade sob controle do EI. Lá, ficaram presas em uma casa com mais de cem mulheres.

De vez em quando, os combatentes levavam uma das mulheres para uma sala e a estupravam. "Diziam que tínhamos de nos converter", conta Sanaa, os olhos baixos.

Enquanto milhões de pessoas se horrorizam com as cenas do piloto jordaniano queimado vivo e do jornalista japonês decapitado pelo EI, mais de 2.000 mulheres iraquianas continuam vivendo um pesadelo bem longe das câmeras.

Essas mulheres são mantidas há seis meses como escravas sexuais, "esposas" ou servas de integrantes do EI na região de Mossul, no Iraque, e em Raqqa, na Síria —as duas "capitais" da facção terrorista.

Elas fazem parte da minoria religiosa yazidi e foram sequestradas em agosto na região de Sinjar, perto da Síria.

A Folha conversou com algumas das poucas mulheres que conseguiram escapar do Estado Islâmico e estão vivendo nos campos de refugiados em Khanke e Sharia, no norte do Iraque.

"Era como se fosse um mercado, eles vinham e escolhiam as mulheres que queriam comprar. Não sei quanto pagaram para me levar", relembra Sanaa.

Todos os dias, os "soldados" do EI vinham escolher e levar embora "suas" mulheres. As mais jovens e mais bonitas eram dadas de "presente" para os milicianos estrangeiros. As que sobravam eram "usadas" pelos soldados locais.

Sanaa foi vendida com suas duas irmãs e mais uma menina e levada para Raqqa, na Síria.

Lá, ela frequentemente era estuprada por combatentes estrangeiros do EI.

"Acho que eles eram russos...ou do Cazaquistão....", diz. "Mas eram menos brutos que os iraquianos." Milhares de estrangeiros se uniram ao EI na Síria e no Iraque.

O EI publicou um comunicado afirmando que as mulheres yazidis, ao contrário de judias e cristãs, que são das religiões de Abraão, poderiam ser escravizadas.

"Antes que Satã revele suas dúvidas aos fracos da cabeça e do coração, deveríamos lembrar que escravizar as famílias dos infiéis e tomar suas mulheres como concubinas está firmemente estabelecido na sharia", dizia o comunicado na Dabiq, revista da milícia terrorista.

Os yazidis são considerados "adoradores do Diabo" pelos islamistas.

Em um informativo creditado ao "escritório de decretos religiosos", o EI informa que, se a capturada for virgem, o soldado "pode ter relação sexual com ela imediatamente após a captura; se ela não for, o útero dela precisa ser purificado antes" e "é permitido comprar, vender e dar de presente as capturadas, já que elas são apenas uma propriedade".

Segundo Sean Moore, psicólogo canadense da ONG Med East, que vem trabalhando com as mulheres yazidis, a brutalidade dos milicianos do EI é assustadora.

BRUTALIDADE

"Estamos falando dos piores tipos de violência: sodomizar com objetos, espancamentos, estupros por vários homens múltiplas vezes, queimar genitais", diz.

Khidher Domle, ativista yazidi e professor da Universidade de Duhok, estima que 5.000 yazidis tenham sido sequestrados desde agosto pelo EI e 3.500 ainda estejam desaparecidos. "Sabemos que muitos dos homens estão nas prisões ou foram mortos, mas calculamos que cerca de 2.000 mulheres sejam mantidas como escravas", disse.

Ele tem uma equipe que está tentando libertar mulheres escravizadas e oferece aconselhamento psicológico e assistência médica para aquelas que fogem ou são resgatadas.

Das 279 mulheres que conseguiram escapar do EI, a maioria foi estuprada ou foi vítima de violência física não sexual, diz Domle, enquanto olha para uma mensagem no celular e sorri. "Boas notícias, conseguimos libertar mais três."

Já as crianças são levadas para campos de treinamento, onde aprendem a usar armas e são doutrinadas na versão fundamentalista do islamismo que o EI prega. "Algumas crianças escaparam, mas, quando chegaram aqui, continuavam rezando cinco vezes por dia; nós dizíamos: vocês são yazidis, não precisam fazer isso. Mas eles afirmavam que o EI ia voltar."

Para Domle, o EI está enfraquecido depois dos ataques aéreos da coalizão internacional, mas não vai libertar as reféns, vai usá-las como escudo humano.

Segundo Noori Abdulrahman, enviado especial do governo regional do Curdistão (área autônoma curda no norte do Iraque) para refugiados do EI, há 1,8 milhão de refugiados do Estado Islâmico, incluindo apenas os deslocados internos (iraquianos) desde junho de 2014. Há também 400 mil sírios e turcos que fugiram do EI e também estão no norte do Iraque.

São yazidis, muçulmanos xiitas, shabaks, cristãos e também muçulmanos sunitas (mesmo ramo do EI) que não concordam com os métodos da facção radical.

Segundo ele, o Exército iraquiano colabora muito pouco, embora a maior parte dos refugiados venha de áreas sob a jurisdição dele, ou seja, fora do Curdistão. E a ajuda da coalizão internacional, que vem fazendo bombardeiros aéreos contra posições do EI, é insuficiente.

"É como dar aspirina para apendicite", diz. "Precisamos de mais ação do Exército iraquiano e mais envolvimento das forças internacionais, porque os peshmerga (exército curdo) sozinhos não vão conseguir retomar Mossul."

As yazidis sequestradas que conseguem voltar para casa enfrentam mais um desafio: o preconceito. Os yazidis são muito fechados, só casam entre si. Mulheres que desrespeitam a tradição algumas vezes são mortas em "assassinatos por honra", apedrejadas.

Muitas não conseguem conceber a humilhação e se suicidam.

"Eles tentaram atacar uma menina, e ela correu para o banheiro e se trancou. Acho que cortou os pulsos. Eles a carregaram toda ensanguentada", lembra Kazhal Sharif, 18, que ficou três meses com outras 300 mulheres em um edifício em Mossul. "Eles me batiam com um taco de bilhar."

Às vezes, ela lembra, traziam roupas de noiva e punham em meninas de 10 anos, que levavam para Síria para "casar".

Editoria de arte/Folhapress

A avó de Kazhal, Gazala, de 80 anos, também foi sequestrada —ficou 75 dias com o EI, e a família pagou US$ 3.500 para resgatá-la. Kazhal e outra menina conseguiram fugir por uma janela à noite e andaram quatro horas até encontrar milicianos yazidis.

"Foram todas as economias da família, tínhamos carro, trator, e o Daish (como o EI é chamado lá) queimou tudo", lembra seu pai, Sharif Rasho, 46.

Para as mulheres que escaparam do EI, as perspectivas são sombrias.

"Nós nunca mais vamos voltar para casa, mesmo que derrotem o EI, não podemos mais confiar nos nossos vizinhos árabes que os apoiaram", diz Sanaa.

Sanaa foi a primeira mulher de sua família a entrar na universidade. Estava no primeiro ano de geografia na Universidade em Mossul e queria ser professora. Mas agora não sabe quando vai retomar os estudos. Não tem ânimo nem para assistir a novelas e filmes de Jean-Claude Van Damme, que adorava.

"Estamos sozinhas no mundo", diz, ao lado da irmã Hanaa.

Sua irmã Hadyia continua escrava do EI na Síria. Os pais e o irmão estão desaparecidos.


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