Folha de S. Paulo


Análise: Jordânia mostra que negociar com terroristas pode dar certo

A disposição da Jordânia de libertar uma terrorista encarcerada que ajudou a matar dezenas de civis, em troca da libertação pelo Estado Islâmico (EI) de um piloto capturado da força aérea jordaniana, vai chocar alguns governos, políticos e diplomatas ocidentais. Mas em boa parte do Oriente Médio a troca, se for concretizada, provavelmente será recebida com um dar de ombros.

O sequestro de reféns e as trocas de reféns são uma forma comum de "comércio" em zonas de conflito no Oriente Médio, desde que califas, emires e tribos disputam território e poder na região. A situação era mais ou menos a mesma na Europa da Idade Média. Mesmo papas às vezes eram vítimas, sendo Leão 9º um exemplo rematado. Muitos príncipes o foram. Reféns são moeda forte. Eles são alavancas de poder. E geralmente valem mais vivos que mortos.

O modo como o EI usa e abusa de reféns é diferente, de maneiras importantes. Sua disposição de executá-los do modo público mais chocante incrementou sua notoriedade -e aumentou o medo e o respeito com que a organização é vista nas áreas que ocupa na Síria e no Iraque. Seu uso de vídeos e outras mídias para ampliar o impacto do drama intensifica o horror -e aumenta a força de negociação do EI.

Contra esse pano de fundo, qualquer hipótese de acordo é mal recebida por líderes ocidentais, para os quais fazer reféns é algo fundamentalmente ilegítimo e ceder às exigências dos sequestradores, através de negociações ou de outra maneira, é imperdoável sob quase quaisquer circunstâncias.

Essa é a posição normalmente adotada pelos governos americano e britânico, que não excluem a possibilidade de negociar mas, ao mesmo tempo, se opõem a fazer concessões, com isso, na prática, tornando quaisquer negociações sem sentido.

Quando, no passado, o governo italiano e outros governos europeus pagaram resgates de qualquer espécie para libertar seus cidadãos feitos reféns, foram acusados de trair seu lado e de incentivar a tomada de mais reféns no futuro.

Mas os Estados Unidos contrariaram frontalmente sua própria posição declarada quando, no ano passado, cinco detentos de Guantánamo, membros do Taleban, foram libertados em troca do sargento do Exército americano Bowe Bergdahl, detido no Afeganistão. A decisão foi altamente controversa.

O deputado republicano Mike Rogers condenou a "mudança fundamental de política norte-americana" que, segundo ele, "indica a terroristas de todo mundo que há um incentivo maior para fazer reféns americanos". A decisão, disse o deputado, "vai colocar em risco a vida de soldados americanos durante anos no futuro".

O problema dos dois pesos, duas medidas não se limita a isso. Quando críticos sugerem que manter suspeitos de terrorismo encarcerados em Guantánamo há anos sem acusação criminal ou julgamento não difere de fazer reféns no campo de batalha, aqueles que criticam as negociações com sequestradores e dizem estar defendendo o estado de direito parecem genuinamente perplexos.

Nesta ocasião, quem está preso no meio dessa divisão dolorosa é o governo japonês, que está tentando saber se a libertação do refém japonês remanescente, Kenji Goto, fará parte da troca prevista entre a Jordânia e o Estado Islâmico. Consta que o Japão já teria feito acordos com sequestradores no passado. Por outro lado, o país se manteve firme quando sua embaixada no Peru foi tomada por guerrilheiros de esquerda em 1996.

Shinzo Abe, o direitista premiê do Japão, parece ser a favor da posição normalmente intransigente dos EUA e britânica nessas questões. Diplomatas japoneses dizem que o público está dividido. Muitos japoneses acham que Goto é culpado pelo que lhe aconteceu, pelo fato de ter viajado à Síria em primeiro lugar. Outros o veem como um homem de coragem.

AFP
Kenji Goto, refém do EI, em vídeo da facção que ameaça matá-lo
Kenji Goto, refém do EI, em vídeo da facção que ameaça matá-lo

Enquanto isso, Shinzo Abe se enfurece e se aflige. Ele condenou como "desprezível" um vídeo de Goto acompanhado pelo aviso de que, a não ser que a Jordânia ceda, ele e o piloto jordaniano terão apenas algumas horas mais de vida.

Jonathan Powell, que foi chefe do Estado-Maior de Tony Blair, argumenta que os governos quase sempre acabam sendo levados a negociar com grupos terroristas. Para ele, é melhor abrir linhas de comunicação e começar a negociar mais cedo, em vez de mais tarde.

Para Powell, é desses contatos que pode surgir o início de uma resolução pacífica de conflitos, incluindo a libertação de prisioneiros e a entrega de armas, como aconteceu na Irlanda do Norte quando o governo de Blair finalmente negociou diretamente com o IRA.


Tradução de Clara Allain


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