Folha de S. Paulo


Radicada no Brasil, sobrevivente de Auschwitz perdeu quase toda a família

Chana Flam, 89, foi capturada pelos nazistas na Polônia aos 14 anos. Segundo a família pode pesquisar, seu pai, judeu ortodoxo, teve a barba cortada pelos nazistas e foi obrigado a segurar um porco para tirar uma foto –desrespeitando preceitos da religião.

Teve um acidente vascular e não resistiu. Dois de seus irmãos teriam sido assassinados com tiros na cabeça. A mãe teria morrido na câmara de gás abraçada a um dos filhos.

Eram seis irmãos. Só Chana sobreviveu. Sozinha, deixou o campo de concentração de Auschwitz, casou-se na Suécia e se mudou para o Brasil.

Perdeu o filho mais velho e o marido. Hoje mora em Belo Horizonte com o segundo filho. Nome de solteira: Chana Rozencwajg.

Alexandre Rezende/Folhapress
A polonesa Chana Flam no lar de idosos onde vive, em Belo Horizonte
A polonesa Chana Flam no lar de idosos onde vive, em Belo Horizonte

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Nasci em Pionky, na Polônia. Nunca gostei de estudar. Não podíamos falar que éramos judeus na escola. Quem tinha dinheiro fugia. Mas quem não tinha...

Em 1º de setembro de 1939, começava a guerra [a Alemanha invadiu a Polônia]. Era sexta-feira. Minha mãe acendeu a vela para o Shabat [dia do descanso judaico] e chorou muito. Perguntei: 'O que foi, mãe?'. 'Agora é a guerra contra os judeus. Bombas vão cair.' Dito e feito.

Separaram a nossa família. Um dia, em 1941, me disseram: 'Já não existe sua casa. Você vai dormir aqui'. Falaram que meus pais estavam em outra cidade.

Mandaram-me para Auschwitz. Cheguei de viagem de muitas semanas nos vagões abertos com a neve caindo. Jogaram pedaços de pão pela janela. Mandavam velhos para a esquerda, jovens à direita. Foi tudo para 'gás câmara'.

No campo de concentração, me marcaram [mostra número tatuado pelos nazistas no braço: A14972]. Eu tinha que soldar rodas de trem.

A gente pensa que a qualquer momento vai morrer. Só isso. 'Ainda estou viva, ainda estou viva.' Jogavam as crianças para os cachorros.

Quando a guerra acabou e saí de Auschwitz, tinha 19 anos e pesava 39 quilos. Os ingleses pensaram que a comida iria salvar a gente, mas quem comeu não sobreviveu [desnutridos tiveram diarreias que levaram à morte]. Fiquei no hospital em 1945, na Alemanha.

Depois, a Cruz Vermelha na Suécia se ofereceu para tratar doentes. Fiquei um ano em sanatórios lá. Não comíamos pão com manteiga. Comíamos manteiga com pão.

Estava havia cinco anos sem menstruar. Os alemães deram remédio para as meninas não menstruarem [a desnutrição pode impedir o ciclo menstrual]. Em um dia no fim de 1945, acordei estranha. Quando olhei, uh, muito sangue. Em 1946, estava melhor.

Comecei a trabalhar lavando pratos. Conheci meu marido e, em 1948, me casei.

Um cunhado tinha se mudado para Belo Horizonte. Meu marido queria ir para Israel, mas, como tinha guerra, falei: 'Você vai. Eu não vou'. Decidimos pelo Brasil.

Em 1950, estava grávida, fomos ao consulado brasileiro na Suécia. Perguntavam nossa religião e vetavam o visto. Dois anos depois, a mesma coisa. Só quando Getúlio Vargas se matou, em 1954, nosso visto foi carimbado. Cheguei ao Brasil em 1955. Em agosto, meu segundo filho nasceu.

Em 1973, perdi meu filho mais velho [num acidente de carro, aos 22 anos], e tudo voltou na cabeça. Tinha o nome do meu pai e do meu sogro.

Em 1986, meu marido morreu de câncer. Comi o pão que o diabo amassou. Fiquei dormindo no sofá. É dureza, sem família, tia, cunhada, primas, sobrinhas.

O casamento do meu neto [em 2014] foi do jeito de Israel. Ela [a noiva] se converteu. Ninguém pediu. Falei ao meu neto: "Não esqueça a kipá [solidéu]". "Vó, eu sei. Sou judeu."

Há muitos anos [em 1993], a equipe [do cineasta Steven Spielberg no filme "A Lista de Schindler"] veio aqui [para colher seu depoimento]. Chorei tanto. Nunca mais quero falar. A gente não dá conta.

Não estou bem. Como pouco, não durmo, nem mesmo com remédio. Há dois anos parei de me mexer. Tive depressão. Pesava perto de 70 quilos, agora peso 46.

Fico parada e vem tudo. Pensei em outra velhice, mas chegou essa, fico com essa. Não gosto de olhar fotos para não voltar para o passado e [perceber que] essa sou eu, cabelo claro, rosto bonito. Meu coração dói muito. Não rezo mais. Só sei que sou judia.


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