Folha de S. Paulo


Autores do ataque ao "Charlie Hebdo" levaram 12 anos se radicalizando

No ano seguinte à invasão do Iraque pelos EUA, um entregador de pizza de 22 anos de Paris sentiu que estava farto. Enojado por imagens de soldados americanos humilhando muçulmanos na prisão de Abu Ghraib, ele planejou ir combater as forças americanas. Estudou como usar um fuzil AK-47 na internet.

Foi uma tentativa quase risível de travar jihad (guerra santa), e, quando o dia de embarque se aproximava, Chérif Kouachi começou a sentir mais insegurança. Quando a polícia o prendeu horas antes de seu voo da Alitalia que partiria às 6h45 do dia 25 de janeiro de 2005, ele ficou aliviado.

"Tive vontade de cair fora, várias vezes. Não queria morrer lá", disse a investigadores mais tarde. "Disse que se eu recuasse, me chamariam de covarde, então decidi ir assim mesmo, apesar das reservas que eu tinha."

Uma década mais tarde, Chérif Kouachi, ladeado por seu irmão mais velho, Said, 34, não teve mais dúvidas no momento em que os dois jihadistas, vestidos de preto e usando coletes à prova de balas e outros equipamentos, deram a uma plateia global uma demonstração implacável de terrorismo.

Entrando com precisão militar na sede do jornal satírico "Charlie Hebdo", em Paris, eles mataram 12 pessoas em nome do islã.

Então, nas horas antes de os dois irmãos morrerem em tiroteio com a polícia, Chérif atendeu um telefonema de um repórter, para assegurar que o mundo soubesse que eles agiram em nome do ramo da Al Qaeda no Iêmen.

PRISÃO

Os dez anos de evolução, de amador facilmente assustado para assassino endurecido, é uma história de radicalismo que aconteceu diante dos olhos das autoridades francesas, que tiveram Chérif nas mãos por duas vezes.

Depois de ser detido em 2005, ele passou 20 meses na prisão. Ali, conheceu e virou seguidor do agente-chefe da Al Qaeda na França, Djamel Beghal.

Chérif também fez amizade com um ladrão condenado, Amedy Coulibaly, que iria sincronizar seu próprio ataque com o dos irmãos Kouachi, matando uma policial e mantendo reféns em um mercado kosher nos dias seguintes ao massacre do "Charlie Hebdo", elevando o número de mortos para 17.

O "New York Times" teve acesso a milhares de páginas de documentos legais que revelam a trajetória de radicalização dos irmãos Kouachi e de Coulibaly.

Eles aprenderam a ser discretos, raspando a barba regularmente e trajando jeans e tênis, sem revelar qualquer indício de seus planos ou crenças jihadistas. Depois que pelo menos um dos Kouachi viajou ao Iêmen, em 2011, os EUA alertaram a França.

Mas três anos de monitoramento dos irmãos não renderam nada, e a vigilância deles foi suspensa na metade de 2014, disse Louis Caprioli, vice-chefe da unidade doméstica de antiterrorismo da França entre 1998 e 2004.

ÓRFÃOS

Chérif e Said Kouachi tinham 12 e 14 anos em 1994, quando a mãe deles adoeceu, e foram enviados ao Centre des Monédières, um centro de adoção em Treignac, na região central da França. O pai deles tinha morrido anos antes, e, quando sua mãe também morreu, o centro, onde os garotos dormiam três em cada quarto, passou a ser seu único lar.

Os dois pareceram se desenvolver bem, apesar de todos os percalços. Said cursou administração hoteleira, e seus colegas o elegeram representante da classe. Os dois irmãos jogavam futebol no clube A. S. Chambertoise.

"Eles riam e jogavam como adolescentes normais", comentou o presidente do clube, Alain Lescaux. "Não havia nada que pudesse indicar o que acabariam fazendo."

Por volta de 2000 os dois irmãos se mudaram para Paris, vivendo no 19° distrito, bairro da periferia com grande população de imigrantes muçulmanos. Chérif Kouachi conseguiu um emprego entregando pizza. Ele fumava maconha regularmente, conforme diria aos promotores mais tarde.

Depois do início da invasão do Iraque, em 2003, os irmãos começaram a assistir às orações na mesquita Adda'wa. Foi ali que conheceram Farid Benyettou, que tinha 22 anos na época e era filho de imigrantes argelinos.

O carismático Benyettou criou um esquema para levar jovens muçulmanos franceses a viajar ao Iraque para se unirem à rede de Abu Musab al-Zarqawi, que em pouco tempo se tornaria a franquia da Al Qaeda na região.

Transcrições de depoimentos dados em juízo mostram que em setembro e outubro de 2004, Chérif e Said começaram a ir regularmente ao apartamento de Benyettou para discutir ataques suicidas. Foi Chérif quem propôs se fizesse um ataque na França, ideia que nem mesmo seu mentor aprovou.

"Chérif não parava de falar em lojas de judeus, em atacar judeus na rua para matá-los", disse seu co-conspirador Thamer Bouchnak em depoimento. "Falava obsessivamente sobre isso, sobre fazer alguma coisa aqui na França."

Um membro da célula deles chegou até Falluja, no Iraque, e foi morto. Segundo seu advogado, Vincent Ollivier, Chérif ficou aliviado quando viu a polícia chegando para prendê-lo.

COMPLÔ

Chérif passou quase 20 meses na prisão de Fleury-Mérogis, na zona sul de Paris. Um dos detentos era Djamel Beghal, jihadista que treinou em um campo de Osama bin Laden no Afeganistão e foi despachado para a França.

Beghal tinha sido condenado em 2001 por planejar um ataque à Embaixada dos EUA em Paris. Ele causou impressão forte e duradoura sobre Kouachi e outro detento, Coulibaly, com 23 anos.

Kouachi foi solto em 2006, sob supervisão judicial. Foi condenado em 2008, mas sentenciado a uma pena já cumprida. Um advogado que trabalhou no caso contou que ele se negou a ficar de pé em uma audiência no tribunal porque a juíza era mulher.

Ele se mudou para um apartamento no subúrbio parisiense de Gennevilliers. Em 2008, casou-se no civil com Izzana Hamyd. Para a lua de mel, eles viajaram a Meca, na Arábia Saudita.

Seu irmão, Said Kouachi, também tinha aderido ao islã mais rígido, embora sua trajetória seja menos bem documentada. Em 2007 ele trabalhou numa equipe de agentes de saneamento em Paris, indo de porta em porta para promover a reciclagem de lixo.

Foi demitido em 2009. Ele era de um grupo de funcionários que se negavam a apertar as mãos de mulheres e insistiam em levar suas esteiras de oração ao trabalho.

Em 2009, Coulibaly e Beghal foram libertados. Eles retomaram o contato com Chérif Kouachi e começaram a traçar um plano. Na primavera seguinte, a polícia passou a interceptar telefonemas entre eles, falando no que parecia ser linguagem codificada.

Eles falavam de um "casamento" futuro -termo sabidamente usado por combatentes do ramo norte-africano da Al Qaeda para aludir a uma operação próxima.

Imagens de câmeras de vigilância mostram Kouachi saindo de Paris pela rodovia A15 para viajar 500 quilômetros para visitar Beghal em Murat, onde este vivia. Ele foi visto caminhando num bosque com Beghal e fazendo exercícios em um campo aberto.

O celular de Beghal era grampeado pela polícia. Em várias ocasiões ele telefonou a um detento, Smaïn Aït Ali Belkacem, então com 41 anos, terrorista que cumpria prisão perpétua por um ataque a bomba contra uma estação de trem de Paris em 1995.

A polícia concluiu que os homens traçavam planos para resgatar Belkacem. Coulibaly, que tinha contatos com traficantes de armas, tentava obter armas. Ainda falando em código, os homens falavam em "livros" (armas) e diziam que precisavam encontrar uma nova "biblioteca" (traficante de armas).

Em maio de 2010 a polícia revistou a casa de Coulibaly em Bagneux, nos arredores de Paris, e encontrou um coldre de revólver e 240 cartuchos de munição de 7,62 mm numa lata de tinta.

No verão de 2010 a polícia frustrou a conspiração dos homens para promover a fuga de Belkacem. Beghal e Coulibaly acabaram condenados e voltaram para a prisão, tendo Coulibaly cumprido sua sentença até março de 2014.

O mesmo juiz considerou que não havia provas suficientes para condenar Chérif Kouachi, que retomou sua vida em Gennevilliers.

Um advogado envolvido no caso comentou que, visto em retrospectiva, o material encontrado no laptop de Kouachi em 2010 deveria ter acendido os alarmes. 
Entre os textos recuperados havia um intitulado "Operação Sacrifício", que descrevia um plano de ataque antevendo as ações que Chérif empreenderia mais tarde.

"Um mujahedin [combatente] entre à força na base do inimigo ou em uma zona onde há um grupo e dispara à queima-roupa sem ter preparado um plano de fuga", dizia o texto. "O objetivo é matar o maior número possível de inimigos. O autor muito provavelmente morrerá também."

EMPRÉSTIMO

Em 2011, um ou ambos os irmãos Kouachi viajaram ao Iêmen para treinamento da Al Qaeda na Península Arábica.

Na breve entrevista telefônica que deu a um repórter de TV antes de morrer, Chérif disse que os irmãos agiram sob ordens da filiada à Al Qaeda e que ele foi treinado e financiado por Anwar al-Awlaki, americano que tornou-se o maior propagandista do grupo.

Em 4 de dezembro, depois de fornecer uma conta de telefone, contracheques e identidade, a agência de crédito Cofidis aprovou um empréstimo de € 6.000 (R$ 18.000) a Coulibaly, segundo o jornal "La Voix du Nord".

Num vídeo póstumo, Coulibaly disse que emprestou dinheiro a um dos irmãos Kouachi para ajudar a pagar "pelo que ele precisava comprar".

ATAQUE

Não havia placa identificando a sede do "Charlie Hebdo". Para entrar no prédio era preciso uma chave magnética. A porta da sede da redação, no primeiro andar, era de metal à prova de balas. Mas nada disso fez diferença.

O ex-entregador de pizzas, que certa vez tinha treinado para a jihad com uma arma de papel, ainda cometia erros. Os Kouachi primeiro foram ao prédio errado, no número 6 da rua Nicolas-Appert, em vez do número 10. Mas ele sabia de detalhes críticos.

Os profissionais da redação se reuniam apenas uma vez por semana, às quartas, por duas horas, começando às 10h. Os irmãos Kouachi invadiram o prédio na quarta-feira, 7 de janeiro, às 11h15.

"Eu os vi a um metro de distância", contou Laurent Leger, um jornalista do "Charlie Hebdo", que conseguiu sair da cadeira e esconder-se sob uma mesa lateral. "Estavam vestidos como soldados. Eles entraram gritando 'Allahu akbar' pelo menos duas vezes."

Eles chamaram aos gritos o editor, Stéphane Charbonnier, o Charb, e o abateram a tiros, antes de disparar uma saraivada de balas contra os cartunistas sentados em volta da mesa de reunião.

A jornalista Sigolène Vinson tentou se arrastar para longe e um dos irmãos se dirigiu a ela. "Não matamos mulheres", ele disse, conforme a recordação de Leger.

Os Kouachi deixaram corpos jogados no chão e depois saíram para a rua. Um transeunte os ouviu gritar "diga à mídia que somos da Al Qaeda no Iêmen".

Eles atiraram num policial que correu para o local e então, enquanto ele estava deitado no chão, o despacharam com um tiro na cabeça. No dia seguinte, Coulibaly feriu um funcionário da prefeitura e matou uma policial.

Na sexta-feira, 9 de janeiro, após a polícia ter encurralado os irmãos Kouachi numa gráfica perto de Paris, Coulibaly invadiu o mercado Hyper Cacher, matou quatro pessoas e fez 12 reféns.

Um cliente do mercado disse ao "Le Monde" que viu o atirador filmando a cena com uma câmera GoPro. Mais tarde, Coulibaly tirou o cartão de memória, inseriu no laptop e editou as imagens.

Ele ainda teve tempo de orar no chão do supermercado cheio de sangue antes de a polícia invadir o local e atirar contra seu peito.

Na gráfica onde os irmãos Kouachi teriam seu enfrentamento final com a polícia, o proprietário, Michel Catalano, contou que pensou que iria morrer. Quando um vendedor foi à porta da gráfica, um dos irmãos o mandou ir embora. "Saia", disse o irmão. "Não atiramos em civis."

Com reportagem de AURELIEN BREEDEB, LAURE FOURQUET, BRUNO MEYERFIELD e ERIC SCHMITT e pesquisas de DAPHNE ANGLES e ALAIN DELAQUÉRIÈRE

Tradução de CLARA ALLAIN


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